la lipset, in slide & mundos
junho 30, 2003
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xv, sobre entrevistas

Na sequência de um breve périplo pela blogosfera em pt notei que ninguém deu atenção ou relevo à entrevista do secretário-geral do PS, Ferro Rodrigues, ao Expresso (n.º 1600, 28 de Junho de 2003, pp. 8-9). É um bom sinal, pois a entrevista, em termos políticos, é de uma franciscana e confragedora pobreza. Em nenhum passo se deslinda o rasgo de alguém de quem se espera que seja hipótese para primeiro-ministro.
Entrevista que também parece ter passado despercebida, mas que merece detalhada atenção, é a de Correia de Campos, antigo presidente do Instituto Nacional de Administração e ministro no último Governo de António Guterres, à revista domingueira do Público, a Pública (n.º 370, 29 de Junho de 2003, pp. 5-8). Correia de Campos disserta sobre o estado da administração pública e sobre a necessidade da sua reforma com uma destreza que o actual primeiro-ministro devia invejar. É que a retórica deste sobre a matéria, para além de ser frouxa e possidónia, apenas conseguiu captar a atenção dos mais incautos por efeito do seu próprio vácuo. T. A.
junho 29, 2003
 
Sebenta de Teresa Alma

État d'esprit, i

Esta chuva que cai, indiferente ao facto de ser final de Junho, confere-me uma estranha sensação de «o mundo aí, fora». A chuva tem este efeito, separa-me do exterior remanescente e devolve-me, por instantes que seja, para dentro de mim, onde nem sempre me reencontro capaz de ser quem sou. É como se a vida nos preenchesse e nos trouxesse à tona do ser vulgar que somos e aí nos descobríssemos sem vantagem e expostos, excessivamente expostos. Rain on me!... T. A.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xi, de Guantánamo a Lieberman

1. Guantánamo é um lugar. E alguém, n'The New York Times, diz ser o lugar de uma sociedade surreal.
2. No Reino Unido, segundo The Guardian, parece que há jornalistas que não deveriam ter-se metido em políticas.
3. Dinheiro, campanhas, propaganda. Pel'The New York Times fica a saber-se que o democrata Mr. Tony Coelho anda a fazer contas à vida e os cenários não estão famosos. "Because Mr. Bush plans to accept public financing for the general election campaign, he can use the money he is raising only between now and the Republican National Convention in New York in September 2004. / «It's a bonanza for them», said Tony Coelho, who for a time was Al Gore's campaign manager in the last presidential race. «There's no way they can spend this amount of money just for themselves». / Mr. Coelho said he expected the Bush campaign to contribute millions of excess dollars to Congressional campaign committees and state and local Republican parties to be used to improve the party's position in Congress. «What they want to do is not just target Bush's re-election but also make the Republican Party the majority party for the rest of the decade if not longer», he said." Curiosamente, acrescenta uma voz d'The Washington Post, parece que, no que tem a ver com financiamento partidário e de campanhas eleitorais, o Partido Democrata está também a colher o efeito boomerang de uma posição sua.
4. Lieberman falou ao Los Angeles Times. Parece que ainda há esquerda nos EUA. S. F.
 
Sebenta de 3ás
Apontamento x, o bloguer como os leopardos de Kafka

A relação do bloguer com o seu blog caracteriza-se por ser uma relação leve, livre, solta. Sucede, porém, que, com o frequente retorno ao posting, o bloguer acaba por ter o mesmo destino que os leopardos de Kafka. Depois de tantas vezes irromperem pelo templo adentro para se saciarem com o conteúdo dos vasos sacrificiais, os leopardos foram integrados no ritual. Por preservaram, sempre, o seu instinto. 3.
junho 28, 2003
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria
Nota x, sobre o horror ao vazio

A propósito do post de José Pacheco Pereira, no Abrupto, sobre o horror ao vazio, cito livremente Foucault, "a lei é a sombra em direcção à qual necessariamente se dirige cada gesto, na medida mesmo em que ela é a sombra do gesto que se insinua".
Como se depreende daqui, existe uma relação de implicação recíproca entre o gesto e a sombra, sombra que, antes ou depois, se transforma em palavra que ordena. Ora, o mais preocupante, se o fulgor liberal nos toca, é a obcessão em fechar o círculo dessa relação, em preencher previamente todos os espaços, negando ao gesto a hipótese de ir para além dos limites convencionados, mas estreitos, da sombra definida ex ante.
Há quem chame civilização à redução do espectro da possibilidade humana aos limites desenhados pelas sombras. Pois bem, muitas vezes essa civilização de sombras é sobretudo alienação, sufoco, malha que nos enleia o corpo num patamar confinado, que nos encarcera na ilusão da liberdade, malha que nos pretende fechar no cerco de nós-mesmos, que nos impede pequenos prazeres e nos furta a possibilidade de, caldeando por dentro, nos construírmos como ser, pessoa, que, acompanhada por outros, aprende e cresce também com os seus erros. À medida que os legisladores - e alguns intérpretes que os ilustram - apertam o cerco, restringindo o espaço autorizado ao gesto, é à vida, mesmo, que eles furtam território e, nesse acto, é a liberdade que eles confinam numa reserva estreita, demasiado estreita, quase que sem margem.
No império de tantas sombras que nos oferecem à ordem, quase que se justifica que, como o outro no instante em que se finava, clamemos: "mehr Licht"! S. F.
 
Sebenta de Teresa Alma
Apontamento xiv, sobre o limiar do umbiguismo

Diz um, qualquer, my blog is the belly-button of the world. Confirma o outro, l'ombelico del mondo! E, enquanto isso, revolvem o umbigo, capturando o cotão que por lá há. Depois, olham para a ponta do dedo, para ver o resultado da missão. Azul, pois claro. O cotão é sempre azul. T. A.
 
caderno de apontamentos de serôdio d'o.
ir de rapaz

haveria de ir sem avisar. primeiro abandono. surpresa. primeiro abalo do ícone do rapaz. ninguém celebrou a sua ausência. evitaram-se as lágrimas. menos ainda houve ansiedade para o seu regresso. apenas silêncio. e uma sobra, pequena, de memória. s. d'o.
 
caderno de apontamentos de serôdio d'o.
juvenil ser

ser sempre o horizonte que fica por alcançar, nos passos que conseguimos cumprir, é o nome de se ser jovem. s. d'o.


 
caderno de apontamentos de serôdio d'o.
a intriga

dizia-se... era assim como uma forma de dizer, de pôr a verdade, mas uma verdade sem autor e sem necessariamente ser verdadeira. dizia-se e era como se tivesse sido dito por alguém conhecido ou mais do que isso, em quem a confiança se credita sem crédito. dizia-se e a intriga tornava-se conhecimento. tudo isto, enfim, se dizia... e, se era dito, era para ser acreditado. e, porque assim era, assim foi. intriga. e nada mais. s. d'o.
junho 27, 2003
 
Sebenta de 3ás
Apontamento ix, sobre a reaccionária e o cínico aqui domiciliados

A Teresa é uma moça de convicções. O Sérgio é um rapaz de suspeitas. Ela afirma. Ele ensaia. Ela é assertativa. Ele é irónico. Por isso, embora conceda que assim possa não ser, concebo uma cena em que a Teresa se vira para o Sérgio e, como o fidalgo para o seu pajem, lhe diz: "Faze lá a especulação que te disse e deixa-te de sentenças. Tu não percebes nada de linhas, paralelos, zodíacos, eclípticas, pólos, solstícios, equinócios, planetas, signos, graus, medidas de que se compõem a esfera terrestre e a celeste, que se alguma coisa percebesses verias claramente quantos paralelos havemos cortado, quantos graus percorrido, quantas constelações ficaram para trás da nossa cabeça. Por isso torno a dizer-te: cata-te e verás que estás mais raso e limpo que um folha de papel branco" (Cervantes, Miguel de, D. Quixote de La Mancha, Lisboa, Bertrand Editora, /2000, p. 576).
Então, embora conceda que assim possa não ser, concebo que Sérgio, ouvido isto, inclinará uma das sobrancelhas e dirá: "Havia tribos em que se voltavam para o ar as palmas das mãos abertas contra os começos de um vendaval. Acreditavam que se o fizessem no momento certo poderiam desviar a tempestade para uma zona adjacente do deserto, para uma outra e mal amada tribo. Havia constantes naufrágios, tribos que subitamente passavam à história, sufocadas por vagas de areia" (Ondaatje, Michael, O Doente Inglês, Lisboa, Publicações Dom Quixote, /1997, p. 24).
Depois, enfim, continuarão a trocar galhardetes. É mais forte do que eles. 3.
junho 26, 2003
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria
Nota ix, sobre os católicos

Por a Teresa destacar a entrevista do cardeal-patriarca... Verifiquei que Rui Branco d'O País Relativo apanhou um artigo muito engraçado, titulado “Il Dio relativo dei nuovi credenti” e publicado no passado domingo n’La Repubblica, sobre os italianos como filhos de um deus relativo. Parece que por lá, como provavelmente por cá, os católicos já não são o que eram... S. F.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria
Nota viii, sobre a opaca evidência de algumas coisas e verdades

José Pacheco Pereira, o animador do Abrupto, disserta na edição de hoje do Público sobre a responsabilidade, também nossa, a ter no processo de democratização em curso no Iraque - vide Pereira, José Pacheco, “O Iraque é também nossa responsabilidade”, in Público, n.º 4844, 26 de Junho de 2003, p. 5. E não esquece o problema das armas de destruição maciça, por ainda não terem sido encontradas e por nem sequer se saber do seu rasto ou sorte.
A este propósito, acontece que tanto n'The New York Times quanto n'The Washington Post é dado conta de que, segundo o Secretário da Defesa dos EUA, "virtualmente todos", e não apenas os membros da actual administração Bush, concordaram que existia no Iraque programas de armas de destruição massiva e armas não convencionais. Aliás, ainda segundo Donald Rumsfeld, os índícios da ameaça iraquiana eram mais do que evidentes. Estranho, no entanto, é que a evidência desses evidentes indícios não tenha a evidência que o que é evidente de facto - e não virtualmente tem. Pois, agora, lá, no terreno, no chão, ninguém encontra o suporte empírico de tamanhas evidências. O que suscita a seguinte interrogação: mas, afinal, eram evidências ou aparências? S. F.

Post-scriptum, ainda a propósito da atitude cínica e incrédula que virtualmente muitos reservam à actual administração norte-americana, vide o artigo de Drake Bennet e Heidi Pauken, “All the President's lies”, publicado no Vol. 14, n.º 5, de Maio passado, d’The American Prospect. Elucidativo. S. F.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria
Nota vii, sobre o Estado-condomínio

Não é novo. Em Portugal há muito o hábito de, em campanha eleitoral, se alardear que se tem amigos ou conhecidos no poder que estão dispostos a dar uma ajudinha. No limite, os candidatos, sem decoro e com entono, podem chegar a informar que tratam por tu qualquer personagem chave, primeiro-ministro, ministro, secretário de Estado, sub-secretário de Estado, presidente de Câmara Municipal, vereador, presidente de Junta de Freguesia, etcetera. Vale tudo para sugerir que, se o candidato for eleito, os outros, os amigos, os conhecidos, são franquia garantida para qualquer demanda por ele expedida.
Este é, de facto, um dos recursos mais rançosos que se podem utilizar em concorrência eleitoral para lugares de responsabilidade política. O exercício político é percebido e assumido como acção numa arena de fulanos, de solidariedades pessoais e afinidades electivas, e não como intervenção (responsável) num quadro institucional.
Mas, no meio disto tudo, o pior nem é a utilização demagógica dos registos que cada um tem na sua agenda de contactos. É, isso sim, o tráfico montado sobre as opacas «teias de amizade política». Às, por vezes, chamar-lhe redes clientelares nem sempre é estar próximo da verdade. Casos há, e não poucos, em que o cheiro da realidade é bem pior. Ó Portugal danado!, este de que José Luís Arnaut faz parte, onde o Estado é tomado, tanto no seu significado quanto na abordagem política que lhe é feita, como uma coutada de uns quantos amigos, tudo bons rapazes, que, qual porteiro, abrem as portas - e não necessariamente só - uns aos outros. S. F.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria
Nota vi, sobre portas que se abrem

A Teresa anda com a argúcia a funcionar de modo selectivo. Ela apanhou, e bem, aquela estória de Narciso Miranda, mas deixou escapar uma outra que implica José Luís Arnaut. Então não é que o homem foi pregar para os Açores, incentivando os seus corregionários a, quando em campanha eleitoral para a Assembleia Regional, lembrarem os eleitores que não se devem esquecer que no Governo da capital, Lisboa, é malta do PSD quem mais ordena. Disse ele: “as relações pessoais em política abrem portas” (José Luís Arnaut cit. in Público, n.º 4841, 23 de Junho de 2003, p. 8). Esqueceu-se de acrescentar, porém, que, por vezes, as portas que se abrem são as portas do calabouço. Para entrar. E não para sair. S. F.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria
Nota v, sobre afinidades electivas

A Teresa já tocou no assunto, na manifesta vontade do presidente da Câmara Municipal de Matosinhos de solicitar uma auditoria a todos os serviços da autarquia. Não notou – nem tinha que notar, pois é apenas uma suspeita cinicamente orientada - que tal expediente talvez seja uma forma de tentar entalar o vereador Seabra, o putativo futuro candidato socialista à presidência do executivo municipal de Matosinhos. Se assim será? Wait and see... Mas quase que me sinto tentado a apostar, dobrado contra singelo, em como a referida auditoria revelará estranhas, senão perigosas, simpatias. S. F.
 
Sebenta de Teresa Alma
Apontamento xiii, sobre a ordem para pregar a esperança objectiva

Interessante a entrevista do cardeal-patriarca de Lisboa, D. José da Cruz Policarpo, ao Público, à TSF e à SIC - Notícias. Gostei, em particular, que ele tivesse reconhecido que “a missão da Igreja, neste momento, é suscitar uma esperança objectiva, objectivada em valores” (José da Cruz Policarpo cit. in Público, n.º 4844, 26 de Junho de 2003, p. 2). Por isso, não compreendi aquela de se rezar, em rogo, ao Espírito Santo, para que os obstáculos que impedem as mulheres de exercer o sacerdócio sejam removidos. Ao ler o que li não consegui evitar um sorriso. Cor de icterícia. T. A.
 
Sebenta de 3ás
Apontamento viii, sobre a reacção

Ultramontanos norte-americanos, assanhados, implicaram com o filme que Mel Gibson está a realizar, sobre a morte de Jesus, o filho do carpinteiro José de Nazaré. Por nunca ser demais o espanto, vide o texto encomendado pela conferência de Bispos Católicos dos EUA e pela Anti-Defamation League a quatro, ditos, professores católicos romanos - “Dramatizing the death of Jesus. Issues that have surfaced in media reports about the upcoming film, ‘The Passion’”. Pungente! 3.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria
Nota iv, sobre geometrias e matemáticas

Outra, da Reuters, apanhada pelo J. do Cruzes Canhoto!, sobre a relação entre os ciclos económicos e o tipo de coelhinhas da Playboy preferido pelos homens - "Playboy models' curves may be sign of the times". Embora o estudo seja curioso, metodologicamente não parece inovador , nem tão pouco sugere resultados extraordinários. Em tempos difíceis os homens preferem mulheres decididas, que, se necessário for, superem ou ajudem a superar a situação; em tempos de descontração, a preferência dos homens dirige-se para mulheres com formas que estimulam a libido até níveis de se perder a cabeça.
Num outro flanco da ciência, parece que, afinal, a justiça lá tem a sua matemática. A este propósito vide o artigo “A mathematician crunches the Supreme Court's numbers”, publicado n’The New York Times, na secção de ciência, de ontem. A forma de voto dos juízes não é assim tão incerta quanto, em tese, se pudesse supor, no sentido em que parecem não ser muitas, apenas duas, as tendências com maior frequência. S. F.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria
Nota iii, sobre o exemplo que vem de cima

O J. do Cruzes Canhoto! apanhou, e muito bem, uma da Reuters – “Senate mulls new rule: don't take the furniture” -, segundo a qual o Senado norte-americano pondera legislar no sentido de impedir que os senadores, eles próprios, levem a mobília do Capitólio para casa.
Ainda sobre o díficil métier da virtude no Senado dos EUA vide o artigo “For senators, soul-searching about the rules”, publicado na edição de 23 de Junho, d’The Washington Post. Com estes dados, compreende-se melhor o motivo por que os militares norte-americanos não estavam sensibilizados para evitar eventuais saques no Iraque. É fartar vilanagem! S. F.
junho 25, 2003
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria
Nota ii, agora apenas sobre o apontamento iv da Teresa Alma

Gostei da citação do Kundera e da sua oportunidade no apontamento iv da Teresa Alma. Mas não sei se não será mais adequada a citação que agora proponho, do visceral Céline. É assim a prosa: "Os homens agarram-se ao diabo das recordações, a todas as suas desgraças, e é impossível fazê-los sair delas. Ocupam-lhes a alma. Vingam-se da injustiça do presente revolvendo no fundo de si próprios o futuro, juntamente com a merda. Bem no fundo, todos eles justos e cobardes. É a sua natureza" (Céline, Louis-Ferdinand, Viagem ao Fim da Noite, Lisboa, Frenesi, 1934/1997, p. 306). S. F.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria
Nota i, sobre os apontamentos iii e iv da Teresa Alma

Ó Teresa, Teresa!... Arguta como és, como é que consegues ceder à ideia de que o passado é algo assim tão definitivo e definido? O passado é um dos objectos mais disputados pela razão simples de que, como tantos outros objectos, não é necessariamente evidente e se presta à plasticidade simbólica. E embora não me cative a ideia de que o futuro é uma espécie de promissed land, o lugar onde tudo se harmoniza - como na síntese dialéctica -, o certo é que o futuro é o horizonte, o espaço onde se concretizarão os cenários. E os cenários, esses, são vários. Ou seja, são vários os possíveis futuros, ainda que alguns futuros sejam mais prováveis e plausíveis do que outros. Portanto, em grande medida, é esta abertura, são as possibilidades que o futuro dispõe que nos permitem a hipótese da escolha e da opção.
Para além disso, não creio que te devas preocupar excessivamente com a não referência ao cristianismo no preâmbulo da Constituição da União Europeia. Por três razões.
Primeiro, o dito preâmbulo não é algo que conte para o que quer que seja; é, apenas e só, uma página onde o presidium da Convenção encarregue de redigir a Constituição europeia decidiu ensaiar a sua faculdade literária, esboçando uma demiurgia da Europa que há-de valer o que hoje já não vale. Por acaso tens presente o preâmbulo da Constituição da República Portuguesa de 1976? Achas que alguém, hoje, passa puto de charuto à conversa que lá está? Não, pois não? Pois, olha, não é de crer que a cotação política e cultural do preâmbulo da Constituição europeia vá alguma vez ser diferente da cotação do preâmbulo da Constituição portuguesa.
Segundo, discutir o preâmbulo é importante. Mas mais importante, muito mais importante, é discutir o conteúdo da Constituição da União Europeia, averiguar em que medida o princípio da subsidariedade é expresso e transposto para o corpo do articulado, etcetera. Focar sobretudo ou exclusivamente a discussão no fait divers da menção ou não ao cristianismo no preâmbulo é deslocar energias fundamentais de uma outra frente de debate, a de saber em que medida as garantias dos cidadãos e a ordem democrática são, de facto, reforçadas ou blindadas. O resto parece-me ruído; talvez ruído convicto, mas não sei se muito responsável.
Terceiro, aleluia!, é muito provável que o mais importante do cristianismo já tenha sido secularizado e transposto para a ordem política moderna. Segundo a doutrina cristã, somos todos irmãos, filhos de um só e mesmo ente divino; segundo o mandamento liberal, somos todos iguais perante a lei e o Estado. Amén! S. F.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria
A condição epistemológica tentada neste atelier

O mundo - que não é mundo, é mundos - é esse estranho absoluto plural de que, por contingência, sou uma liliputiana parcela. E é pela consciência dessa condição e escala, do infinito que me transcende e ultrapassa, que me confesso adepto da ironia. Não é segredo.
Como escreveu Herberto Helder, “A realidade é apenas o que se propõe como tal. Mas devemo-nos munir sempre de uma ironia que coloque dubitativamente a nossa mesma proposta. A vida assenta na tensão que as desavindas propostas de verdade estabelecem entre si” (Helder, Herberto, Photomaton & Vox, Lisboa, Assírio & Alvim, 1979/1987, p. 70). Daí que, pequeno como me sinto, aceda a acompanhar Bernardo Soares, para quem “O homem superior difere do homem inferior, e dos animais irmãos deste, pela simples qualidade da ironia. A ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa dois estádios: o estádio marcado por Sócrates, quando disse «sei só que nada sei», e o estádio marcado por Sanches, quando disse «nem sei se nada sei». O primeiro passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós dogmaticamente, e todo o homem superior o dá e o atinge. O segundo passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós e da nossa dúvida, e poucos homens o tem atingido na curta extensão já tão longa do tempo que, humanidade, temos visto o sol e a noite sobre a vária superfície da terra” (Soares, Bernardo, Livro do Desassossego, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998, p. 165).
O horizonte é este e os passos que contra ele se conseguirem são as coordenadas. S. F.
 
Sebenta de Teresa Alma
Apontamento xii, ainda sobre o paradigma de Orwell

Como diz uma alma que me é próxima, não é por se chamar laranja a uma maçã que esta se transforma num citrino sumarento. A realidade é o que é. Não nos iludamos! T. A.
 
Sebenta de Teresa Alma
Apontamento xi, contra a democracia fandanga

Denuncio uma certa irritação. A democracia, ao contrário do que muitos pretendem ou insistem em pretender, não é sinónimo de anarquia. Se é governo do povo, pelo povo e para o povo, a democracia não é o governo da turba, da agitação, da demogogia, do populismo, da opinião efervescente. T. A.

 
Sebenta de Teresa Alma
Apontamento x, sob o signo de Orwell

Orwell nasceu há cem anos, um século. E há pouco mais de meio século, em Animal Farm, publicado em 1945, mas sobretudo em 1984, publicado em 1949, legou-nos a evidência de que a linguagem que medeia a nossa relação com a realidade permite jogar convenções de tal modo arbitrárias que, no limite, podemos chamar branco ao preto e vice versa, iludindo-nos, assim, no mesmo mundo como se ele, o mundo, fosse outro.
Foi tendo isto em mente que li o artigo de Fernando Rosas, publicado na edição de hoje do Público, sobre a hipótese de Portugal enviar uma missão da GNR para o Iraque. Às tantas, prosa avançada, pergunta (retoricamente) o articulista da banda sinistra: “estão as cidadãs e os cidadãos portugueses dispostos a permitir que um corpo de polícia nacional seja associado por este Governo à política de guerra e ocupação dos EUA na região?” (Rosas, Fernando, “A GNR não deve ir para o Iraque”, in Público, n.º4843, 25 de Junho de 2003, p. 5). E, para que as cidadãs e os cidadãos portugueses não ficassem cativos da dúvida, o articulista, por elas e por eles, sentencia assim o seu juízo: “devemos sacudir o torpor e agir decididamente contra o envio das forças da GNR para o Iraque” (ibidem). Pois, pois... constata-se, à saciedade, que ainda há quem diga que o branco é preto e que o preto é branco.
Então é assim: Fernando Rosas parece padecer ou de dissonância ou de histerese cognitiva. Embora ainda existam no Iraque algumas bolsas que resistem à nova ordem, aí já não existe guerra. O que existe é, isso sim, um processo de recomposição das instituições iraquianas, processo que, para culminar no horizonte desejado, exige o apoio responsável dos países com ordem democrática, entre os quais Portugal está incluído.
Também a mim não me parece nem prioritária nem francamente justificada a remessa de um corpo da GNR para o Iraque. O cenário por lá ainda é vago demais. Mas, se cumpridos todos os trâmites exigidos - e alcançadas todas as garantias necessárias -, não questiono a legitimidade do Governo para tomar uma decisão nesse sentido. Se, em meu juízo, isso for uma opção condenável, tratarei de dar publicidade à minha posição e às razões que a fundamentam, assim como tratarei de registar o facto na memória e de o considerar no momento em que me for possível pronunciar-me sobre a composição do futuro Governo, através de eleições legislativas. Não é a turba, nas ruas, que deve determinar as decisões políticas. Pois isso não é democracia; é populismo! T. A.
 
Sebenta de 3ás
Apontamento vii, sobre uma distopia outra que não a de 1984

A referência - no post anterior - a 1984, de George Orwell, empurrou-me para outra narrativa de clausura humana na ordem constituída, a de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Recordo-me, em particular, daquela passagem em que Guy Montag, bombeiro cuja missão era queimar livros, desabafa à esposa, Mildred, nestes - julgo que exactos - termos: “Last night I thought about all the kerosene I’ve used in the past ten years. And I thought about books. And for the first time I realized that a man was behind each one of the books. A man had to think them up”. 3.
 
Sebenta de 3ás
Apontamento vi, sobre George Orwell

Nasceu, vai em cem anos exactos, em Motihari, Índia, Eric Arthur Blair, o nome de baptismo de George Orwell. Sem ele, hoje, não diríamos algumas verdades com tanta elegância - como, por exemplo, "all animals are equal but some animals are more equal than others" -, nem teríamos uma percepção tão sintetizada (e denunciada) das condições de produção da ordem absoluta ou total - reproduzo, não sei se ipsis verbis, um trecho mínimo de 1984, “'There are three stages in your reintegration', said O’Brien [to Winston Smith]. ‘There is learning, there is understanding, and there is acceptence'”. 3.
 
Sebenta de 3ás
Apontamento v, sobre Lou Reed & Antony

As primeiras datas da tournée europeia de Lou Reed pós The Raven são em Coimbra, dias 4 e 5 de Julho. E, iupi, iupi, lá, lá, lá, o Antony, a melhor coisinha que apareceu depois do pão fatiado - segundo Reed -, sobe também ao palco. É muito provável que, na primeira das datas, o ele, a personagem reportável, vá ouver o concerto. O que significa a hipótese de haver uma reportagem sobre o acontecimento. 3.
 
Sebenta de 3ás
Apontamento iv, sobre Moacyr Scliar

Sobre o último livro de Moacyr Scliar, Saturno nos Trópicos - A Melancolia Européia Chega ao Brasil, boas notas de Manuel Jorge Marmelo, no seu Mãe, também já tenho um blog, e, depois, de Francisco José Viegas, no seu Aviz. 3.
junho 24, 2003
 
Sebenta de Teresa Alma
Apontamento ix, sobre o tomado no Grã Norte

Espreitei o Abrupto e percebi que José Pacheco Pereira está retido lá para os quase confins da civilização. Pior, lá, do seu paradeiro de circunstância, ele não consegue blogar em condições. É triste. Para ele e para mim. Entretanto, por cá, esperarei lealmente que retorne aos posts. Esta é, por ora, a única solidariedade de que sou capaz. Para além das saudades, claro está. T. A.
 
Sebenta de Teresa Alma
Apontamento viii, sobre o nome simpático da corrupção

O maior da Câmara Municipal de Matosinhos, Narciso Miranda, enunciou a vontade de solicitar uma auditoria a todos os serviços da autarquia, com incidência a partir do exercício de 1997. Disse ele, "esta medida tem a ver, por um lado, com a vontade de avaliar resultados de gestão, mas também com os métodos de gestão. Muitas vezes acumulamos erros por simpatia" (Narciso Miranda cit. in Público, n.º 4842, 24 de Junho de 2003, Suplemento: Local - Lisboa, p. 49). Mas, por simpatia para com quê ou quem? Isso é que era importante saber. Mas será que se vai saber? T. A.
 
Sebenta de Teresa Alma
Apontamento vii, sobre George Soros

George Soros já não é o homem que era! Há dúvidas? Veja-se, como prova da sua decadência, a peça "America's globe role", estampada na última edição, a de Junho, d'The American Prospect, a explicar-nos a razão pela qual a luta por uma sociedade aberta global deve começar no cerco doméstico americano. Será que não já não há imperialistas despojados de vergonha? Este mundo anda muito estranho. Que falta faz a ordem (decente) das coisas! T. A.

 
Sebenta de 3ás
Apontamento iii, sobre o Sérgio Faria

Boas e novas. Consta que o Sérgio Faria, temporariamente indisponível - por estar retido na box -, vai aportar em breve aqui ao painel, para animar a reserva «Atelier para variações». Que o seu mau génio não demore a deixar marca por aqui. E welcome to the machine!, pois, então. 3.
 
Sebenta de 3ás
Um diabo em figura de gente e a sua sobrinha

Há muito que ele não vai a essa coisa das missas. E não se lhe conhece simpatia por padres, qualquer que seja a sua patente ou divisa na hierarquia da madre e santa Igreja Católica, Apostólica, Romana. Cínico, confessa apenas que, por ter credenciais suficientes e abonatórias da sua relação passada - muito passada, mesmo - com o catecismo, se reserva ao direito de se considerar católico com o estrito propósito de preservar justificação moral para o gozo dos ditos dias santos, também (re)conhecidos como feriados de ir à missa.
Assim posto o seu perfil, dele não se esperava que houvesse sequer de ser convidado para ser padrinho de qualquer criatura. Mas desse clarividente modo não entendeu uma sobrinha sua. E ele, perante insistência da menina, por afeição e afecto, lá acedeu participar na cerimónia da confirmação dos votos do baptismo da sobrinha reguila.
Chegado à igreja, o seu corpo reparou que o templo não estava devidamente aclimatado. Isso começou por o incomodar. Para além disso, apesar de haver bancos reservados para as pessoas que iriam colocar a mão direita sobre o ombro direito dos crismandos, ele teve a noção de que aqueles bancos não eram lugar para si. Decide, portanto, ficar de pé e ouvir o sermão do reverendíssimo bispo, em que, entre homenagens aos pastores e catequistas, diversos avisos compuseram a mensagem. Num dos primeiros avisos, disse o bispo assim: “as igrejas são casas de portas abertas e, por isso, por vezes há espíritos indignos, demónios, que entram nos templos, como aquele em que agora estamos”. Era justamente esses tais demónios e mafarricos que a grei católica, ali reunida, estava para renunciar.
Entretanto, ao lado dele, a voz voluntária de uma mulher gorda e suada, com uma criança ao colo, exclamava repetidamente, embora em surdina, “vade retro!, satanás”. E ele, ali, sem perceber se aquelas palavras, as do bispo e as da mulher gorda e suada, com a criança ao colo, se dirigiam a si ou se eram apenas palavras de circunstância, conversa para rebanho ouvir e próprias de ovelhas ferverosamente acólitas. Facto, facto, é que isso incomodou-o. Mais ainda do que a reza de duas dezenas e a pedagogia do bispo sobre o ritmo e a entoação a imprimir à reza das Avé Marias e dos Pai Nossos, trauma já de si colossal.
Por isso, cumprida a breve missão que o obrigou ali, ele, discreto, tratou de abandonar o ritual. Não acompanhou, em consequência, o que sobejou da cerimónia, designadamente a celebração do mistério da eucaristia. A pouca vergonha cristã ainda domiciliada em si, moveu-o, confessou ele, à decência do afastamento. Aquela não era a sua casa, nem a casa dos seus pais. Mas visto por uma outra perspectiva, o que sucedeu foi que ele pura e simplesmente tinha a paciência congestionada. E padeceu de tentação, apetecia-lhe um café. Pelo que, no fim de contas, ele é um católico não autêntico, mas exemplar. Daqueles, tantos, que, na companhia da sua própria solidão, assumem que o pecado, assim como o erro, é condição de melhor virtude. E não clamam Dominus mihi adjutor! 3.
junho 23, 2003
 
Sebenta de Teresa Alma
Apontamento vi, sobre o oxímoro

O garçon, o Nuno, sabe que eu não sou leitora do Correio da Manhã. Por isso não foi sem perplexidade que reagi ao facto de, esta manhã, ele me ter colocado um exemplar (da edição de ontem) de tal jornal junto à chávena de café que me serviu e de ter apontado para uma determinada notícia. “Consegues descobrir aí o oxímoro?”, perguntou-me, em desafio, ele. Li a notícia e percebi que reportava acontecimentos ocorridos durante a cimeira da União Europeia, realizada na Grécia. Em concreto, era noticiado que os díscolos que habitualmente se misturam nessas procissões de tropa fandanga contra a globalização lançaram uma quantidade significativa de cocktails molotov. A manifestação, segundo a notícia, era pacifista. Assim, claro está, como o Correio da Manhã é um bom jornal. T. A.
 
Sebenta de Teresa Alma
Apontamento v, sobre a vendetta diplomática

Convenhamos, a superior ordem de marcha dada ao embaixador Seixas da Costa que o despachou da ONU de New York para a OSCE de Wien nunca foi bem explicada pelo actual Governo. Aquando do facto, ficou no ar e permaneceu a sensação de que tal recâmbio serviu, sobretudo ou também, para um cavalheiresco ajustar de contas entre pessoas de bom trato e chá. Ainda assim, reconheço, o episódio não me surpreendeu. Não tenho da diplomacia, enquanto corps, uma imagem que vá para além da de um exército de personagens de ópera, habilitadas, disponíveis e motivadas para o ensaio de coreografias e protocolos extravagantes, sem, no entanto, se vincularem a galhardias ou a outras firmas de honra. Para além disso, os diplomatas são da pouca fauna que trafica regularmente segredos e informações classificadas, o que, suspeito, estuga a adrenalina e obriga ao realismo - realismo que é o que é, pois o que tem que ser tem muita força. Por isso, confesso, entreteve-me, e não pouco, saber que, agora, o mesmo embaixador Seixas da Costa não aceitou ser o enviado especial da União Europeia para o Médio Oriente, impedindo, assim, o Governo português de riscar mais um traço no seu currículo de figuras nacionais colocadas em postos de grande visibilidade internacional. Gostei sobretudo do gesto de luva dirigido a Martins da Cruz. E da sua cor também. Era branca, a luva. É isto que me fascina na diplomacia. A elegância e a urbanidade com que as personagens se tratam. T. A.

 
Sebenta de Teresa Alma
Apontamento iv, ainda sobre a UE e o cristianismo

O cristianismo é inequivocamente uma das traves maiores do lastro civilizacional europeu. Não reconhecer esse facto no preâmbulo da Constituição da União Europeia é um erro, um erro crasso, tanto mais que um dos objectivos desse mesmo preâmbulo é identificar e recensear o fundo histórico que compôs e sustenta o actual espaço europeu. Creio, mesmo, que é uma atitude discriminatória, no sentido em que desqualifica a importância do cristianismo na construção do que, como europeus, somos hoje e podemos ser amanhã.
Bem sei que a União Europeia procurar escorar a sua legitimidade sobretudo na sua condição de projecto e não tanto nas heranças ou nos patrimónios que lhe subjazem, facto que parece dar uma extraordinária leveza à promessa da Europa. De qualquer modo, por muito que se pretenda esquecer ou se negligencie o facto, o certo é que, para além das diferenças inscritas nos chãos da Europa, existe um passado cristão sedimentado nas instituições e na memória das pessoas, das pátrias feitas. Pelo que o que é necessário é respeitar categoricamente esse passado, não (re)inventá-lo preconceituosamente. Pois só sobre uma plataforma firme se consegue avançar demorada e duradouramente para o futuro, não sobre matérias dissolutas ou gasosas, vagas. T. A.
Post-scriptum, quando esboçava este apontamento recordei-me de uma passagem d’Le Livre du Rire et de L’Oubli, que transcrevo. “O futuro é só um vazio indiferente que não interessa ninguém, mas o passado está cheio de vida e o seu rosto irrita, revolta, fere, a ponto de o querermos destruir ou voltar a pintar. Só se quer ser senhor do futuro para poder mudar o passado. Luta-se para se ter acesso aos laboratórios em que é possível retocar as fotografias e reescrever as biografias e a História” (Kundera, Milan, O Livro do Riso e do Esquecimento, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1979/1988, p. 24). Neste seguimento, permita-se um acrescento: por muito que se ceda à mania de corrigir ex post os sinais que a História deixou, verdade, verdade, é que ela foi o que foi e não algo diferente. T. A.
 
Sebenta de Teresa Alma
Apontamento iii, sobre a UE e o cristianismo

Nem a Constituição da União Europeia é uma necessidade, nem o preâmbulo à dita faz qualquer falta. Mas se é por aí que nos querem levar, então, se se presume incrustado um mínimo de literacia histórica no juízo dos convencionais redactores da peça, a referência ao cristianismo é obrigatória. Caso contrário, fica-se com a sensação de que, pelo menos por alguns instantes, Giscard d'Estaing se comportou, mesmo que contra a sua vontade, como o condutor de um bulldozer cujo combustível é o "laicismo mais rançoso" - tomo emprestada esta ajustada e linda expressão de Frei Bento Domingues (vide "Constituição europeia em nome de Deus?", in Público, n.º 4840, 22 de Junho de 2003, p. 6). É por esta e por outras que mantenho uma simpatia muito mais inclinada para girondinos do que para jacobinos. T. A.

Post-scriptum, Há bons posts sobre esta matéria lavrados por dois (retornados) infames; de Pedro Mexia, no Dicionário do Diabo, e de Pedro Lomba, no Flor de Obsessão. T. A.
junho 22, 2003
 
Sebenta de Teresa Alma
Apontamento ii, sobre o surfista rosa

Segundo uma nota inserida no último suplemento Y do Público, Pedro Adão e Silva, o enclave juvenil no secretariado do Partido Socialista (e o PAS do País Relativo), tem no maior dos penhores dos seus gostos musicais o álbum The Queen is Death, dos malogrados The Smiths. Este facto revela um gosto talhado, urbanamente talhado. Bom, portanto. Mas, se assim é, o que é que fazia o mesmo Pedro Adão e Silva no caleidoscópico Fórum Social Português? Bem sei que ele, tal como outros dirigentes do Partido Socialista, não se prestou a calcorrear a avenida da Liberdade abaixo, oferecendo o seu corpo à parada folclórica com que o Fórum Social Português encerrou. Mas o que é que o consabido surfista rosa, para mais tocado por Yeats e por Belo, andava a fazer no meio daquele povo em estado de gente? Será que alguém deu por lá eco, por exemplo, a The boy with the thorn in is side e isso atraiu-o ao arraial? Ou a sua presença foi, mesmo, apenas, uma dissonância de gosto? Seja como for, provado está que há gostos e gostos, uns bons, outros nem tantos. Mesmo na mesma pessoa. T. A.
 
Sebenta de Teresa Alma
Apontamento i, sobre o estranho caso do gelado não recomendável a certas sensibilidades

Solstício... Sou uma Alma, suspeito que rara e rústica, que ainda olha para o mercúrio de um termómetro escalado em graus centígrados. Para além disso, se não estou no lugar certo, incomoda-me sofrer a temperatura destes dias. Sobretudo porque me afecta o corpo, entorpece-o, e, nessas condições, o meu espírito flui, se flui, lento.
Apesar de tudo, quase a tanger o limiar da estivação – e com a função do raciocínio resumida à sua frequência mínima –, vejo-me assomada de extraordinárias inquietudes trazidas por acasião e circunstância deste calor incómodo. É que, num quarto de página ímpar, a página quarenta e cinco, do Público da passada sexta-feira, a IgloOlá - Distribuição de Gelados e Ultracongelados, Lda. deu-se ao voluntário cuidado de fazer publicar uma nota de informação dirigida “às pessoas alérgicas à avelã e amêndoa” – (ele há cada raio de alergia!)... –, onde era lavrado um aviso que avisava assim: “o produto ROMÂNTICA contém na sua composição avelã e amêndoa, cuja menção, por lapso, não figura na lista de ingredientes das embalagens dos últimos lotes de produção”.
No imediato instante após ter lido o aviso, reli-o. Senti um sobressalto, não pequeno. Senti um sobressalto, não pequeno, porque tenho uns amigos que têm o hábito de se empaturrarem num jantar semanal e, alguns deles, antes de avançarem para o Justerinni & Brooks de quinze anos, por norma deglutem uma tremenda fatia do dito produto. Ora, e se algum deles é, sem disso saber, alérgico à avelã ou à amêndoa? Será que isso explica os resultados das análises que eles têm andado a fazer para aí ultimamente? Será que algum deles anda agora a ler a lista de ingredientes exposta nas embalagens desses tais últimos lotes de produção e a convencer-se que, por ora, até os alérgicos à avelã ou à amêndoa, todos, podem comer Romântica?
Ai, ai..., já não bastava o calor, e mais isto, ainda por cima, para me arreliar. Tenho de contar isto aos rapazes. Eles têm de ter muito cuidado com aquilo que comem. T. A.

Post-scriptum, depois de vendido tanto corneto, tanto épá, tanto supermáxi, tanto perna-de-pau, a IgloOlá, com o pouco elegante sobrenome Distribuição de Gelados e Ultracongelados, ainda é apenas Lda.? A coisa não podia e devia já ter chegado a S.A.? T. A.
junho 21, 2003
 
Sebenta de 3ás
Apontamento ii, sobre a Teresa Alma

O la lipset, in slide & mundos conta, e por isso agradecidos e honrados estão os fundadores deste blog, com mais uma mão subsidiadora, a de Teresa Alma. Doravante, ela é a menina cá do painel e ocupar-se-á preferencialmente de mundanidades. Acrescente-se, en passant, que dela não é de esperar scientia bene dicendi. Que bem vinda seja, pois. Agora, girl, play the blues... 3.
 
Sebenta de 3ás
Das (boas) surpresas

Ela tentou-o, “jantar?”. Ele hesitou e não ofereceu a resposta devida, “decide tu”. Assim definida a equação, ela decidiu. E ele, irónico, suspeitou da proposta dela, inclinado pelo cinismo habitualmente domiciliado em si. Ela armou-se em chauffeur e rumou o carro a Leiria. Como se fosse necessário ir a Leiria para jantar...
No caminho, em manifesta contravenção – acusada por ele –, ela pegou no nokia não sei quantos e telefonou a uma amiga, indagando sobre a localização do restaurante. A amiga forneceu-lhe as coordenadas, ilustrando-lhe o caminho. Ele agitou-se no banco. Embirrou com o nome do restaurante em hipótese, «Malagueta Afrodisíaca». Mas, do fundo do seu agnosticismo, terá concedido, em pensamento, seja o que o primeiro termo da santíssima trindade quiser.
Chegaram a Leiria pouco passava sobre as vinte horas e trinta minutos. Foi fácil estacionar o carro, o que não é ocorrência frequente na dita cidade. Evitaram o rapaz das moedas.
Entraram na praça Rodrigues Lobo e perceberam a animação trazida pela feira do livro. Ela, à frente, conduziu o passo e apontou ao número dezassete da rua Gago Coutinho. Ele seguiu-a, mas cismava na suspeita, consciente de que o destino não se deve entregar a divinas vontades. À entrada da rua, uma placa sinalizava para perto o restaurante demandado e ela anunciou-o, “é ali!”.
Era. Entraram no restaurante. O cenário revelou-se acolhedor, a decoração new wave. Ele aconselhou a mesa mais reservada, menos exposta à porta de entrada. Cardápio nas mãos, ela optou por taglietelle, estava com apetites apontados para um prato de cozinha italiana. Ele escolheu um bife dinamarquês, acompanhado por batatas salteadas, cenourinhas e molho de iogurte com alho. Outras hipóteses havia, várias, igualmente tentadoras. Mas as escolhas, a gosto arriscado, foram aquelas.
As entradas foram uma agradável surpresa, ao olhar e ao paladar. E a sua chegada à mesa foi o primeiro momento em que ele admitiu suspender a irónica suspeita que ordinariamente empresta às hipóteses estranhas que lhe são propostas. Das entradas, apreciaram sobremaneira uma delas, a pasta de atum. O bouquet de pão, diverso, foi igualmente uma revelação. Pediram, ambos, para beber, sumo de laranja natural.
A música estava ajustada ao ambiente, ritmo latino cosmopolita, o mundo em melodia, suave. Conversaram.
Avançada a investida sobre as entradas, confessado o agrado da experiência, surgiram os pratos. Apresentação requintada, embora sem excesso. Provaram. Gostaram. E mutuaram comidas. Ela arriscou o bife dinamarquês cravado no garfo dele, ele saboreou o taglietelle servido na colher dela. Aprovação recíproca.
Estavam satisfeitos. Mas havia ainda o horizonte, ritual para ele, das sobremesas. Ela escrutinou uma das hipóteses dele, o gelado de baunilha com chocolate quente e canela. Ele insistiu na mousse de moka. Boa aposta, a dos doces.
Após a sobremesa, apenas ele pediu café. Pediu também uma garrafa de água sem gás. Uma chávena, com aroma A. Nannini, e vinte centilitros de água natural mineral do Luso, foi a resposta do serviço. Simpático. E, assim, findou o jantar.
Uma (boa) surpresa. Para ela. E para ele. Sobretudo para ele. 3.

 
Sebenta de 3ás
As lições do velho americano como antecipação a American Beauty

Leaves of Grass é, por várias ordens de razão e em diversos planos, uma obra imponente e monumental. Percebe-se nela não apenas a potência da energia telúrica da natureza, a vida, mas também o processo da modernidade, a força singular da pessoa humana e a nova imagem do mundo aproximado à liberdade. Na prática, em Leaves of Grass, Whitman cantou-se a si mesmo. E, através de si e por si, cantou a condição humana, cantou os tempos e os lugares da condição humana, cantou o mundo, o mundo pleno, como se fosse uma boulevard ecuménica onde todos, sem excepção, se reúnem e encontram, como que cumprindo o destino cósmico da humanidade. A este propósito, escreveu assim o poeta: “Sei que o passado foi grande e o futuro será grande, / E sei que ambos curiosamente se unem no presente / (Por causa daquele que represento, por causa do homem médio comum, por tua causa, se és esse homem), / E que onde eu estou ou estás nesse dia, aí é o centro de todos os dias e de todas as raças, / E aí está o significado para nós de tudo o que jamais veio das raças e dos dias, ou jamais há-de vir” (Whitman, Walt, Folhas de Erva, Lisboa, Relógio d’Água Editores, 1855-1897/2002, p. 419).
Reconheça-se, no entanto, que Walt Whitman, irmão reclamado por Fernando Pessoa, não é apenas uma voz vital da modernidade; ele é ainda, e não menos, a expressão autêntica da alma americana. Por outras palavras, Walt, yankee, é também a voz da América, mas de uma América outra, profunda, aberta em hipótese para o horizonte. E isto mesmo se percebe porque, apesar da força da verdade que a natureza lhe vingou no sangue, se observa que ele não deixou de olhar para a sua pátria em interrogação: “E tu, América, / Fizeste uma avaliação real do teu presente? / Das luzes e das sombras do teu futuro, bom ou mau?” (ibidem, p. 699). Aliás, é talvez por isso que Whitman, em nome da grei de que se fez narrador, reclama a essência e a virtude americana, exigindo à sua presença os singelos, isto é, “Aqueles que olham descuidadamente para a cara dos Presidentes e Governadores como que a dizer-lhes: Quem sois vós? / Aqueles cuja paixão nasce da terra, simples, nunca contrangidos, insubmissos, / Aqueles que são do interior da América” (ibidem, p. 233).
Em todo o caso, a sua derradeira lição, a lição do poeta, encontra-se provavelmente no seu «Adeus!», ao confessar, em testemunho e em testamento, que “Quando a América faz o que foi prometido / Quando através destes Estados caminha uma centena de milhares de soberbas pessoas, / Quando outros se afastarem para dar lugar a soberbas pessoas e colaborarem com elas, / Quando os filhos das mais perfeitas mães revelarem a América, / Então, eu e os meus poemas, colheremos o devido triunfo” (ibidem, p. 861).
Por pouco mais, é de dizer, enfim, que Whitman, homem e diáspora, limiar do mundo na pessoa, reduto em poesia da humanidade, é, como nação, o corpo e a voz das lições do velho americano, do incerto uncle Sam, a antecipação literária a American Beauty. 3.

Post-scriptum, para quem procurar um entendimento da constelação de princípios e valores que funda a experiência e a matriz constitucional norte-americana, Leaves of Grass é o complemento necessário de De la Démocracie en Amérique, de Tocqueville. Em particular, por ambos, compreender-se-ão a força e as raízes que seguram a liberdade e uma ordem democrática do lado de lá do Atlântico norte. Para muitos, um dos mais extraordinários mistérios contemporâneos. 3.
 
caderno de apontamentos de serôdio d'o.
nine.eleven, a memória dos destroços

do edifício como das ruínas, são os
lugares que se prolongam pelo tempo,
estilhaçando a memória num fulgor
extinto que projecta matérias
e ausências. e nunca as coisas aí, dispersas
na sua original ordem, são vistas sem o encontro
da aresta que lhes desenha o
contorno e acende a sombra. o mundo,
assim visto, coloca o observador numa
segunda etapa, iludindo a sua ausência
dele. mas é pelo interior que o
mundo, através da missão do observador, se
observa e reduz a complexidade do processo
ao estado de narrativa. que a ironia enuncia
indiciária.
s. d'o.

 
Sebenta de 3ás
Apontamento i, sobre o serôdio d'o.

serôdio d’o. é uma personagem indisponível em suporte de corpo, que existe apenas nos intervalos concedidos por alguém que a sofre. O fulgor irónico em que vive é talvez a sua propriedade mais característica. Em todo o caso, como personagem que é, serôdio d’o. não tem consciência do seu justo cerco de demónios, facto que, não obstante o sofrimento de uma inquietante experiência de desassossego, lhe oferece uma sensação maior de liberdade. Por ser quem é e como é, nada mais se sabe sobre serôdio d’o. ou o respectivo paradeiro. 3.
junho 20, 2003
 
Manifesto blend
la lipset, in slide & mundos é um blog composto pelos subsídios de três mãos (não necessariamente tangíveis), a de serôdio d'o., a de 3ás e a de Sérgio Faria. A criação desta reserva, como acto decidido e voluntário, corresponde à ocupação e à assunção de um espaço de responsabilidade nessa ecúmena reticular chamada worldwideweb, o qual, espaço, servirá para dispersar aquilo que a liberdade e a disposição forem permitindo a tais mãos.
A cada mão, um ofício. serôdio d'o. é o rapaz com a missão de destilar, em verbo, a vertigem vital que o aflige. 3ás é o repórter, o cronista de vivências de um tal ele. Das três personagens, 3ás é talvez a que comporta maior sentido cosmopolita e aquela que acompanha de modo mais circunstanciado o acontecer das artes. Sérgio Faria, esse, é o encarregado de se ocupar das mundanidades e de lhes reagir em conformidade. Aliás, foi admitido nesta estreita federação de cínicos apenas por ter uma inserção temporal e útil no entorno humano e por apresentar a faculdade de ler jornais. Em todo o caso, reconheça-se, o sérgio Faria é afectado por um recorrente apelo paroquial, demónio que o resgata demais à tona da civilização e o embaraça, em dois sentidos distintos, no lugar das suas telúricas origens.
Por outras palavras, a cada uma das mãos, uma província deste blog. A serôdio d'o., a província la lipset; a 3ás, a província in slide; & a Sérgio Faria, a província mundos.
Cada uma destas três personagens agradece, desde já, a atenção investida na leitura do que vierem a expor neste painel. Já agora, para eventuais contactos, é favor utilizar o seguinte postigo: lalipset@hotmail.com. s. d'o. e 3., com a aprovação tácita do por ora indisponível S. F.

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