la lipset, in slide & mundos
julho 31, 2003
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xlvii, um cínico, nem sempre assim

Na habitual troca de jornais, insisto para que ele leve o Diário de Notícias para ler o novo capítulo do «Diário de Bagdad», assinado por Mário Vargas Llosa, não, não pelo director-adjunto António Ribeiro Ferreira. Pergunto-lhe, nessa oportunidade, sobre o que julga do veto do Presidente da República à alteração da lei de criação de municípios. "Foi o que tinha que ser", respondeu-me, com uma sobriedade que me pareceu sincera. Esperava um sorriso, de regalado, de triunfante, mas nada. Mas lá por dentro, concerteza, ele estava danadamente contentinho. E certamente que, por isso, hoje, o mundo ainda lhe parece ter uns lapsos, embora raros, de ordem. Lá mais para a noite, longa, seguro, vai dormir mais tranquilo, o cínico. T. A.
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xlvi, justiça a ti, justiça a mim

O excesso de agitação em torno do funcionamento do sistema judicial português, mesmo que de agitação serena, agitada por notáveis da praça, suscita dois sentimentos, um de tranquilidade, outro de inquietude. Tranquiliza por tornar evidente os problemas e obrigar à acção. Se houver vergonha da parte dos responsáveis – o que não é pedir muito - , sentirão o impulso para resolver, com discernimento, os problemas detectados e sobejamente recenseados. Mas inquieta por parecer que o sobressalto, verificado nesta circunstância, se deve ao facto de algumas dos sujeitos agora afectados pertencerem ao cerco dessa espécie de casta de intocáveis como notoriedade social e política. Quando o problema tocou outros, anónimos, não consta que tenha havido uma vaga de indignação tão acentuada e mediática. Pelo menos, não recordo que, antes, o endereço msoares@fmsoares.pt servisse estivesse disponível para aceitar a subscrição de qualquer apelo a uma reflexão – e consequente intervenção - manifesto sobre o estado da justiça penal portuguesa. Pelo chão facto de que esse apelo ainda não tinha sido redigido. T. A.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota lv, considerações tempestivas sobre o Rendimento Mínimo Garantido
julho 30, 2003
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota liv, o lado esquerdo no éter


 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota liii, sobre o labor e a fidúcia

Disse o primeiro-ministro, numa das últimas etapas do seu périplo por terras beirãs, que “faz bem sair das intrigas políticas de Lisboa e falar com o país que trabalha e confia” (José Manuel Durão Barroso cit. in Público, n.º 4877, 29 de Julho de 2003, p. 10). Não sei qual é a parcela nacional que, no conceito do primeiro-ministro, trabalha e confia, mas é provável, bastante mesmo, que se tenha encontrado com pessoas que vivem do seu esforço e engenho e que lhe concedem algum crédito de confiança. Porém, sei que os políticos, entendidos na sua dimensão institucional, são, entre um rol alargado de instituições, aqueles que menos confiança tendem a merecer. Em Portugal e não só, é certo. Mas em Portugal essa confiança é menor do que em qualquer outro país da União Europeia. Portanto, nesta matéria, recomendável é que não existam deslumbramentos. Nem ilusões. É que os que trabalham não são muito dados a confianças nos políticos. S. F.
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xlv, este é um homem que

Li a entrevista de Nuno Higino ao Diário de Notícias (n.º 49.069, 30 de Julho de 2003, pp. 34-35) e uma sensação de estranheza apossou-se de mim. Ele é cura, poeta, alma desassombrada, corpo fulgurante onde o fulgor seria improvável. É por ele que, mais numa parcela, sou capaz de acreditar no mundo e no seu divino fautor. T. A.
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xliv, a indignação republicana e patriota

Consta que o deputado Manuel Alegre, enquanto representante do povo português, se sentiu ofendido por Paul Wolfowitz ter considerado que a Guarda Nacional Republicana tinha “um nome infeliz”, por se assemelhar à denominação da desmantelada guarda pretoriana de Saddam Hussein. A silly season parece apurar a sensibilidade das gentes. E veja-se lá que até dos deputados, esses eleitos. T. A.
 
Sebenta de 3ás

Apontamento xxv, quem és tu?, Capitú

Conta Nélson de Matos, o homem da editora Publicações Dom Quixote e do blog Textos de Contracapa, que recebeu um cartão do gabinete do presidente da Câmara Municipal de Lisboa a agradecer, como manda o protocolo, o facto de haver sido oferecido ao edil um exemplar do Dom Casmurro. Curiosamente, o envelope que continha o referido cartão foi endereçado ao exm.º senhor Machado de Assis. Por o acto haver sido orientado por boas intenções e maneiras, nada lhe há a acrescentar ou a opôr. A não ser que o exm.º senhor Machado de Assis, autor do livro, brasileiro, se finou ainda antes de haver República em Portugal. 3.
 
Sebenta de 3ás

Polaroids da cidade grande, vinte e três horas e depois

Com o calor de estivo, a cidade transforma-se num cerco largo, as pessoas mexem-se dentro dela com mais à-vontade. Lisboa aproximou-se de si, está mais cosmopolita e menos metropolitana. O calor revela os corpos, mais o das mulheres, mais ainda o das raparigas, pés, pernas, braços, alguns ombros, não tantos umbigos, pele corada pelo sol. Para além desta figuração mais exposta, porém, a vida não é muito diferente do que era antes. Talvez o ritmo seja outro, com maior indolência, mas são os mesmos pequenos jogos de sempre que acontecem e se observam.

Cena um. “Sabes que, se não queres engravidar, no mínimo deves usar o preservativo, mas ela não. E agora?”. O silêncio da outra estende-se. E ela aproveita para continuar a dissertação moralista.

Cena dois. Um rapaz diz “Comigo, não! Ele volta a fazer o que fez hoje e eu meto-o no sítio, podes crer”. O colega, à frente, ajusta-se à cadeira e aconselha o outro, “Acho que deves ter calma. Sabes que, se ele quiser, ele pode fazer-te a folha. E depois? Achas que estás em posição para arriscar?”.

Cena três. Numa outra mesa, três amigos. Um deles diz “Mas vocês já viram quanto é que aquilo vai custar? Para quê é que o gajo quer uma casa daquele tamanho? Só porque o papá é rico? A vida não lhe custa a ganhar, é o que é!”. Os outros dois parece que não estão na conversa. O monólogo prossegue.

Cena quatro. Um, uma, sem compromisso. Sorriem um para o outro, trocam algumas palavras, mas mantêm uma distância nervosa entre os corpos. Não se tocam, não se beijam. Percebe-se uma intimidade entre ele, mas que ainda não despoletou. Seguramente sondam afectos.

Cena cinco. Elas, quatro, bamboleiam o corpo. Fazem notar-se pela presença. Fazem notar-se também, ou sobretudo, pelo riso quase compulsivo. Comentam a aparência do garçon, “Um pedaço, ele é um pedaço”, diz uma entusiasmada às outras. Riem, riem, histrionicamente. Fazem ouvir-se.

Cena seis. Mais um, mais uma, de mão dada. Caminham colados. Param. Ela abre a bolsa, encontra o telemóvel, segura o cabelo corrido atrás da orelha esquerda, esboça um sorriso e fala com alguém. Ele distancia-se, não se compromete com a conversa que ela está a ter. Revela indiferença, ostensiva. Ela apercebe-se e tenta recuperar a sua companhia. Estende-lhe a mão. Ele recusa-a. Ela sofre, nota-se, mas finge e continua o diálogo com a outra pessoa, simulando uma animação que se vê não ter.

Cena sete. Três amigos. Chegam e compram os bilhetes para o cinema. Não trocam palavra entre si. Cada um paga o seu bilhete, embora um deles tenha pedido três. Esse aponta para um painel e chama a atenção dos outros para um pormenor. Sorriem com cumplicidade.

Cena oito. Uma. Aproxima-se com as unhas da mão esquerda contra os lábios. Espreita o espaço, inquire com o olhar. Arranja o corpo para conseguir outro ângulo de visão. As unhas continuam a selar a boca. Não vê quem procura. Liberta a mão esquerda, puxa o cabelo para trás e regressa pelo caminho por onde se aproximou.

Cena nove. Um casal, de saída, discute. “Estás a olhar para onde?”, inquire-o ela, enquanto o arrasta pela mão. Ele, constrangido, reage. Está a ser admoestado à frente de outros, estranhos, mas outros. Percebe-se que isso o incomoda. As outras quatro, sequiosas, hienas, riem. Conseguiram mais uma vítima. A discussão do casal continua, aumenta de tom. Ela, irritada, acelera o passo. Ele persegue-a. As outras quatro, sentindo-se vitoriosas, trocam cumprimentos entre si. E riem ainda mais.

Cena dez. Ele levanta-se e dirige-se ao balcão para pedir uma água. Recebe o troco, mas deixa cair uma moeda. Apanha-a. Depois vai, sai. Percebe-se-lhe a solidão incrustada no corpo. Provavelmente vai blogar para casa, o Mexia.

Lá fora os carros são poucos. Fosse invernoso, não houvesse férias, e o trânsito seria muito maior, mais carros, mais autocarros, menos transeuntes.

Cena onze. Ela levanta-se, dirige-se ao wc. Agita-se quando anda. Ele fica na mesa, com um sorriso paternalista, mas também com a sensação de que a presa já está rendida ao ataque. Já só, olha em torno. Centra alguma atenção nas quatro, algumas mesas depois. Em seguida pega no telemóvel e faz qualquer coisa demoradamente – lê mensagens, talvez – que o faz reeditar o sorriso. Ela regressa. “Bute?, vamo-nos?”, pergunta ela. Vão embora. Ele abandona um pack de Camel sobre a mesa.

Cena doze. Ele levanta-se. Está quase na hora, meia-noite e trinta minutos. Sala um, Il Est plus facile pour un Chameau… Um único espectador, ele. A cena repete-se, como é seu desejo. O celulóide projecta-se na tela. E ninguém mais ali. 3.
julho 29, 2003
 
caderno de apostamentos de serôdio d'o.

egoliberdoxias

§ cclxxvii, deus é uma hipótese, entre tantas outras. e sobre ela não há documentação suficiente que a confirme ou a infirme. por isso, talvez que, como em relação a qualquer outra matéria, a atitude recomendada seja não inventar. e nem sequer expectar demasiado. s. d'o.
 
caderno de apostamentos de serôdio d'o.

egoliberdoxias

§ cclxxvi, deus é uma hipótese, como tantas outras, mas singularmente curiosa. cumpre-se apenas pelo exercício da fé dos homens. o que o dispensa de existir, sem, no entanto, afectar a sua existência. s. d'o.
 
caderno de apostamentos de serôdio d'o.

o prazer da fuga

"ei!, rapaz!". o puto sobressaltou-se. tinha na mão uma pedra anunciada, com destino. a mão, fechada contra a pedra, começou a transpirar. julgava-se sozinho, frente a uma enorme janela, de vidro único, do velho hospital – vincado, para resistir na breve perenidade dos homens, na memória da cidade –, edifício abandonado à inexorabilidade de ser ruína. mas a exclamação de alguém, ali, obrigou-o ao alerta.
olhou em torno, perscrutando o espaço. na esquina do edifício antigo, protegido pela sombra, um vulto anunciara-se pela voz em exclamação grave. parecia um velho do centro de idosos ali fronteiro. mas a certeza, o puto, não a podia ter. a silhueta, protegida pela distância, não tinha a resolução necessária para denunciar a sua identidade.
sentiu-se descoberto. abriu a mão. o puto fez saltar a pedra. recolheu-a novamente na mão. (acto contínuo) esticou o braço atrás e, numa operação de súbito, projectou a pedra contra a janela. o impulso foi forte. algo, maior do que a norma, obrigou-o ao feito. não se sabe se voluntário ou instintivo. ouviu-se, com repercussão, o tom agudo do vidro a partir e a estilhaçar.
o vulto, então, revelou-se do canto e precipitou-se em direcção ao puto. correu desconjuntadamente, próprio de alguém já não habituado a correr. correu com o braço direito erguido, o punho fechado. e vociferava "á meu grande malandro!". o puto, entretanto, pôs-se em fuga. a liberdade, o prazer da liberdade, exigiu-lhe a fuga. e o vulto, agora já reconhecidamente um velho, continuava a sua perseguição gritando "á bandido!, se te apanho, se te agarro...". mas o puto correu com a convicção que a liberdade lhe exigia. sentiu a adrenalina, o ritmo cardíaco a acelerar. o asfalto certo sob os seus pés. entrou no encontro das três ruas depois do grande portão, avançou pela rua santa teresa. continuou a correr. e preservou-se, apesar de cansado, livre. sentindo que, apenas enquanto livre, poderia continuar a fugir. a fugir dali como de qualquer outro lugar, para qualquer outro lugar, para qualquer outro tempo. para ser livre. s. d'o.
julho 28, 2003
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota lii, a memória palimpsesto

A vida é um processo de sobreposição de ironias. Investigar a mesmidade dos chãos, porém, é sondar recordações que, embora reportadas como firmes, se revelam perspectivas, tantas vezes contraditórias, de tal modo que o pouco que têm de comum é o tópico sugerido pela interrogação que despoleta o exercício da memória. E não obstante seja desconcertante não conseguir uma versão depurada do que aconteceu - a «verdadeira verdade» -, certo é que se aprende e apreende que o que aconteceu foi registado e participado por pessoas com posições e disposições diversas, de tal modo que o que se encontra são inevitavelmente tempos cruzados, sobrepostos, misturados, resgatados, perdidos, jogados entre si. E isso é também elemento constitutivo da identidade de cada lugar. S. F.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota li, a identidade da sociologia, segundo Bourdieu
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota l, razões do paroquialismo português

Um texto publicado hoje num suplemento do Público, sugeria que as motivações e as argumentações dos diversos movimentos de demanda de criação de novos municípios teriam um fundamento económico. Concerteza que esse esse fundamento existe. Mas existe um outro, cultural e político. Ao baterem-se pela criação de um município, os movimentos respectivos almejam também uma qualificação estatutária e política do território onde vivem. E, por vezes, esse pulsar assenta fundo, em sentimentos duradouros de identidade territorialmente referenciada, que se associam ao desejo de maior investimento local. (...)
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xliii, li (mesmo!) e gostei

A época talvez seja de tonterias e levezas sob o sol, silly season. Mas há sempre algo mais do que isso. A entrevista a José Cutileiro prova-o. Em particular por nos obrigar a uma sobriedade que nem sempre nos está disponível. Ao lê-la sente-se que o mundo está muito para além da bolha em que cada um de nós vive e que, na monumentalidade da sua escala, é o lugar do plural e do processo complexo. Lapidar é esta observação, "Toda a gente diz que os americanos são muito arrogantes, e de certa forma são. (...) Mas como português a arrogância americana protege-me da arrogância espanhola, da arrogância francesa ou da arrogância inglesa, que me tocam mais directamente" (José Cutileiro cit. in Público, n.º 4876, 28 de Julho de 2003, p. 22). O que significa que o nosso lugar no mundo, Portugal, se mede pela distância a um conjunto imenso de pontos, uns mais próximos, outros mais distantes, uns mais proeminentes, outros mais frágeis. É esse nó de distâncias, variadas e variáveis, que nos fez, faz e irá fazer sermos portugueses. Pois é essa a geometria que, em cada tempo, gera as identidades no mundo e as dinâmicas do mundo. T. A.
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xlii, a sensibilidade das instituições e um jantar

É suposto que as instituições funcionem regularmente e, nesse funcionamento regular, tenham o seu ritmo próprio. Pelo que das duas, uma, ou o jantar do presidente da República com os seis maiores da justiça portuguesa é um jantar de rotina ou é uma prova de que se corre, aparentemente com sofreguidão, para tentar remediar o que há muito está mal. Não é que pelo facto de a justiça estar mal há muito que nada se deva fazer agora, é mais, muito mais, o facto de há muito nada se ter feito. É que desde esse há muito que os que sofriam acusavam-se vítimas de injustiça, tal como outros o fazem hoje, porém, a sua voz não era amplificada e passou como silêncio ou ruído pobre, ao fundo. E não é pelo facto de se esperar que as instituições sejam entidades sine ira et studio que elas não devem ter sensibilidade. Devem tê-la, para les uns et les autres, em isometria. T. A.

Post-scriptum, como costuma dizer o Sérgio, sou capaz de apostar dobrado contra singelo em como as sete personagens do jantar, finda a refeição, revelarão existir um consenso em torno do diagnóstico que observa a necessidade de se avançar com discernimento para uma reforma das instituições implicadas no processo da justiça. Contra a morosidade e a ineficácia dos tribunais. E a favor de uma melhor verificação dos direitos e das liberdades e garantias dos cidadãos. Será caso para dizer, olha a novidade... Apostas?, é que aceitam-se apostas.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xlix, oxímoro, a propósito de William Kristol

Se os conceitos são categorias com alguma densidade teórica e ajustamento analítico, talvez faça sentido perguntar o que é um neo-conservador. Se se é conservador, pode ser-se neo?, esta é a interrogação. S. F.

 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xlviii, das disponibildades do centro às necessidades da periferia

A propósito da comparticipação governamental em alguns investimentos locais, o primeiro-ministro na sua visita a Trancoso disse: "Não gosto dessa visão paternalista, não partilho daquela ideia de que lá vem alguém de Lisboa com um cheque" (José Durão Barroso cit. in Diário de Notícias, n.º 49.066, p. 20). Um apontamento. A questão pouco tem a ver com paternalismo, tem muito mais a ver com patrimonialismo. Uma vez que o Estado é um dos poucos núcleos patrimoniais existentes em Portugal com uma capacidade e uma disposição distributiva alargada e uma vez que a generalidade dos municípios portugueses tem uma capacidade de investimento bastante reduzida, compreende-se que os autarcas tendam a concentrar as suas demandas e as suas expectativas nos governantes. É por isso que anseiam que alguma personalidade se desloque da capital lá à terra. E, de preferência, que leve um cheque. Ou, em alternativa, uma caneta para assinar um ou mais contratos-programa. Pouco lhes importa, aos autarcas e às populações que representam, as ideias que o primeiro-ministro partilha. As necessidades falam mais alto, quase sempre sob a forma de apelo. S. F.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xlvii, a histerese em política

Em entrevista ao Diário de Notícias do passado sábado, o presidente da Assembleia da República disse: "Verifica-se que as comissões de inquérito são apenas um campo de combate político desmedido, não permitem conclusões úteis e, com toda a franqueza, não ajudam nada a resolver os problemas que era suposto resolver nem prestigiam o parlamento" (Mota Amaral cit. in Diário de Notícias, n.º 49.065, 26 de Julho de 2003, p. 12). Esta afirmação não é surpreendente. É mais do que público e notório o facto de que os inquéritos parlamentares servem quase exclusivamente o processo de confronto entre os partidos políticos e pouco ou nada os objectivos subjacentes à própria identidade desse instituto. Surpreendente é, isso sim, que exista quem se sinta melindrado com a referida afirmação, porquanto ela traduz apenas o reconhecimento de um facto há muito conhecido e sabido. S. F.
julho 27, 2003
 
Sebenta de Teresa Alma

Almanque da República, iv

Novas prosas que comovem e outras matérias de pátrio relevo, recentemente publicadas no Diário da República, o jornal de todos nós.

Portaria n.º 600/2003, de 21 de Julho. Adita a opção e ramo de Guitarra ao curso bietápico de licenciatura em Música, variante de Instrumento, ministrado pela Escola Superior de Artes Aplicadas do Instituto Politécnico de Castelo Branco e aprova o respectivo plano de estudos.

Portaria n.º 608/2003, de 21 de Julho. Actualiza as taxas de tráfego a aplicar nos aeroportos sob responsabilidade da empresa ANA - Aeroportos de Portugal, S. A. Revoga a Portaria n.º 1023/2002, de 9 de Agosto.

Decreto-Lei n.º 162/2003, de 24 de Julho. Define como contra-ordenação a venda e a cedência de imitações de armas de fogo a menores, interditos ou inabilitados por anomalia psíquica, bem como a sua posse ou uso por estes.

Decreto Legislativo Regional n.º 18/2003/M, de 24 de Julho. Altera o regime jurídico da concessão de avales pela Região Autónoma da Madeira, estabelecido pelo Decreto Legislativo Regional n.º 24/2002/M, de 23 de Dezembro.

Decreto n.º 30/2003, de 24 de Julho. Exclui do regime florestal parcial uma parcela de terreno, com a área de 2,50 ha, situada no lugar de Merujal, freguesia de Urrô, concelho de Arouca, integrada no perímetro florestal da serra da Freita, para construção de habitações.

Resolução da Assembleia Legislativa Regional n.º 5/2003/A, de 25 de Julho. Resolve requerer ao Tribunal Constitucional a declaração da inconstitucionalidade ou, caso assim se não entenda, da ilegalidade dos artigos 83.º, 84.º, 85.º, 88.º e 89.º da Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto, com as alterações introduzidas pelo artigo 1.º da Lei Orgânica n.º 2/2002, de 28 de Agosto, e do artigo 3.º da Lei Orgânica n.º 2/2002, de 28 de Agosto.

Para a semana haverá mais. T. A.

 
Sebenta de 3ás

Apontamento xxiv, sobre a minha identidade

Alma amiga perguntou-me quem sou, porque me chamo 3ás. Expliquei-lhe que o meu nome era uma espécie de singela homenagem a Isaiah Berlin. Não percebeu no momento em que lhe dei a resposta, mas explico-lhe melhor agora. Albert Alfred Apricott era o pseudónimo usado por Berlin nalguns textos de apreciação estética de música que escreveu. Nada mais tenho a dizer. A não ser que, no momento em que lavro esta confissão, estou acompanhado pela música de Dilon Djindji. 3.
julho 26, 2003
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xlvi, sobre uma boa surpresa

Uma amiga, de quem não tenho tido notícias ultimamente, dá boa prosa a estampar no Expresso. Prova: Brito-Vieira, Mónica, "Terceira-via: uma morte anunciada?", in Expresso, n.º 1604, 26 de Julho de 2003, p. 28. Um dos melhores exercícios, disponíveis em suporte de jornal - mas não só -, de denúnica e demolição da actual retórica balofa - senão mesmo cabotina - de Anthony Giddens e suas acólitas criaturas. S. F.
 
Sebenta de Teresa Alma

État d'esprit, vii

Sábado, sábado... Este é um daqueles sábados que me são, estou em estado de búzio. Vou recolher-me. Vou fechar-me. Não estou para ninguém. E estou muito pouco, mesmo muito pouco, para mim. T. A.
julho 25, 2003
 
caderno de apostamentos de serôdio d'o.

identidade errante

por pressentimento, existe-lhe uma fé
onde deus não entra, embora a porta não
esteja fechada. não é por convite, não
é por medo, porém vive numa câmara
onde os segredos lhe fazem a identidade
em que se sente, sem o assédio do
exterior, sem o convívio com o círculo
dos fragmentos.

socorre-lhe a transparência dos gestos, a
aproximação ao tempo e aos motivos de assim
ser. mas é na cidade, o raro lugar onde vai, que
se recorda da incapacidade de, no seu
domicílio, cheirar a fragância da terra molhada.
e são estas recordações, muitas vezes ausentes, que
lhe conduzem a descoberta de si, diferente de
ser ninguém, mas muito mais íntimo do que
ser apenas alguém. s. d'o.
 
caderno de apostamentos de serôdio d'o.

mater

talvez não seja exacto, mas a vida
transcorre do teu seio. seres
mãe é, portanto, seres permeável para
o teu avesso, criatura que te prolonga
até à distância em que ela se guarda
identidade. s. d'o.
 
caderno de apostamentos de serôdio d'o.

silêncio

o silêncio pareceu-lhe o anfitrião
que reúne todos os corpos. tocou-lhe, como
um cego que tacteia o ambiente, e
estendeu-se nele até cair perto de si
e perceber que o silêncio era um apelo
sem origem e eterno destino. s. d'o.
julho 24, 2003
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xlv, sobre o compasso nocturno da companhia

Há diálogos que quase não se têm, pois exigem uma reciprocidade maior do que a conseguida na conversa, reciprocidade, essa, que exige tempo, tempo que está sempre adiante, a adiantar-se numa fuga para o horizonte. Mas à noite não é assim, o ritmo é diferente, o tempo flui mais lento. É à noite que os amantes se encontram. É à noite se traçam traições. É à noite que se chora. É à noite que começam as mudanças no mundo. É à noite que se foge. É à noite que se anunciam intimidades. É também à noite que o silêncio revela toda a vida pelo contraste. Porque à noite a dinâmica do fluxo que passa pelas coisas, o ritmo do tiquetaquear pendular do relógio, é o ritmo necessário do diálogo. É à noite que a solidão se confessa em cada um de nós. Mas é também à noite, nesse mesmo instante - porque é à noite que os tempos se fundem -, que a solidão se converte num nó fantástico que nos remete para o mundo arena, onde nos somos com os outros. No limite, é sempre a mesma metáfora, les uns et les autres, talhada no tempo permanente, mas que apenas sob a lua se ressuscita como solilóquio. Para além deste alcance, apenas sobram a memória, a imaginação ou o projecto, matérias ecuménicas de encontro com a alternativa de cada um ser quem é. É assim a vida. S. F.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xliv, sobre o fungagá

Alguém, presidente de uma Assembleia Municipal, confunde uma petição com uma epístola de um munícipe. Mais grave!, parece não ter a mínima noção das implicações processuais decorrentes da apresentação, a si, de uma petição. Em face disto, o que há-de emergir primeiro?, o riso ou a indignação? S. F.

Post-scriptum, por vezes assoma-me a vontade de criar um magazine sobre incompetências e manigâncias autárquicas. O tempo escasseia-me, porém, para uma missão de tão monumental envergadura.
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xli, sobre Ferro e os outros

Fala-se muito na escuta judicialmente ordenada ao telemóvel do secretário-geral do PS, mas convém não esquecer que não é apenas ele que é escutado. Também os seus interlocutores, sejam eles familiares, amigos ou quaisquer outros, designadamente entidades empossadas em cargos políticos, são alvo de escuta. E se me inquieta que um conselheiro de Estado tenha o seu telemóvel sob sentinela, não me inquieta menos que os outros que com ele conversam, apenas e justamente por isso, vejam também a sua esfera de liberdade estorvada. T. A.
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xl, sobre a carta magna da competitividade

É risível o enuciado de uma página sobre a competitividade proposto pela Associação Industrial Portuguesa, pois não avança para além do óbvio e nalguns pontos seja a ser patético. Destaco dois. Entende a AIP que, em termos de políticas públicas, é necessário "consolidar as despesas públicas, reduzir a carga fiscal e parafiscal sobre as empresas e canalizar o investimento público para projectos com valor acrescentado «indiscutível»" (cit. in Público, n.º 4872, 24 de Julho de 2003, p. 18). O que seja esse valor acrescentado «indiscutível» é que é discutível, não é? Mas entende ainda a AIP que, no mesmo domínio, é necessário "implementar uma política de tratamento dos resíduos industriais e adoptar uma «posição realista» na definição dos objectivos ambientais" (ibidem). A expressão «posição realista» ecoa... rebatida, concerteza, por uma das novas estratégias empresariais aconselhadas, a terceira, "transformar atrasos e constrangimentos históricos em oportunidades para a competitividade, antecipando as inovações" (ibidem). Sou conservadora, mas irritam-me os atavismos. Sobretudo os empresariais, os dos empresários sem rasgo e sem horizonte de visão para além do seu pocket money. T. A.
 
caderno de apostamentos de serôdio d'o.

eulália, filha de maria madalena

eulália era cachopa solta. insistiu sempre em trazer o corpo para a liberdade, tresmalhando-se das convenções. o impulso para ser livre, o apelo do vento, convocou-a sempre para o exterior de si, abrindo-se, sem se despir, para além do que os envergonhados olhos do cerco estavam habituados.
era uma boa rapariga boa, disse o alípio, triste por nunca ter merecido sequer um beijo dela. alípio é o que se pode chamar de ressabiado. jamais ter gozado dos ofícios de afecto que eulália lhe pudesse providenciar fê-lo um pobre de carácter, atreito a canalhices, propenso à maledicência, ciência que não tinha raros adeptos por ali. os meandros do lugar eram de tal modo embrulhados que quase todos confabulavam sobre as misérias dos vizinhos. e, claro está, das vizinhas, mulheres sem recursos de vergonha. naquele lugar, afinal, não moravam inocentes. e eulália era apenas mais uma filha de maria madalena. s. d'o.
julho 23, 2003
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xliii, sobre o pouco ou muito mundo

Há um conflito fraticida na Libéria. O problema não é de hoje. Mas isso não impede que hoje mesmo, quando tanto se fala em globalização, se coloque uma interrogação: quão mundo é o mundo actualmente?, é pouco?, ou é muito? S. F.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xlii, sobre o (des)ordenamento do território português

Um dos recursos fundamentais de qualquer Estado é o respectivo território, pelo que o modo como este é ocupado e utilizado constitui um factor fundamental de desenvolvimento. Em Portugal, no entanto, não existe nem uma cultura de planeamento nem uma cultura de ordenamento de território, sedimentadas e generalizadamente partilhadas, o que constitui um limite claro ao aproveitamento e à produção das oportunidades daí decorrentes. As vagas de planos de ordenamento do território que têm sido concebidos, designadamente aqueles de responsabilidade municipal, nem sequer iludem tal facto, no sentido em que, não obstante todo o aparato técnico que apresentam, raramente lhes subjaz uma perspectiva integrada das dinâmicas e das tendências sociais, assim como das formas sociais de apropriação e de utilização do espaço e dos elementos nele integrados, desde a paisagem às espécies animais e vegetais ou aos recursos hídricos ou geológicos. Grosso modo, tais planos são sobretudo planos gizados no cerco fechado dos gabinetes, coerentes com as doutrinas de referências, mas, pelo menos em alguns casos, com pouco ou nenhuma sintonia com a realidade que pretendem regular. A esta luz, compreende-se, pois, o tom de crítica e de alerta de dois artigos estampados hoje no Público (n.º 4871, 23 de Julho de 2003), o de João Pereira Reis, "Planos de ordenamento «sem rei nem roque»" (p. 6), e o de Miguel Magalhães Ramalho, "O conhecimento geológico do país: uma base sólida para o desenvolvimento" (p. 31). É que há ainda tanto para fazer... E esse fazer é um fazer que, como o futuro, não acaba. S. F.
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xlix, sobre as arribações da praia-mar

Cito, "não deve o movimento dos movimentos [- leia-se: o Fórum Social Português -] prender-se a conceitos reguladores, como «sociedade civil» ou «cidadania», esse laço que afunda um indivíduo na sua realção a uma soberania" (Neves, José, "A praia", in Público, n.º 4871, 23 de Julho de 2003, p. 5). Cito ainda, "contra a mobilidade, Giddens apela a que não deixemos a identidade nacional nas mãos da direita. Contra Giddens, contra do direito das prátrias, propomos a zona híbrida das praias. Vindos do mar ou vindos da terra, os homens da praia não tem pátria. É o bronze contra a pureza, a rebentação contra o território, a vida contra o trabalho. Contra a identidade, as identificações em curso. Contra a Europa das pátrias, a Europa das praias" (ibidem). Como até aqui tudo me pareceu tão evidente, cito ainda, uma derradeira e vez mais, "a radicalidade facilitou a vida aos indivíduos que quiseram lutar contra a guerra. Hoje, só ela não é sectária" (ibidem). Ela, quem?, a guerra? Também me queria parecer. Agora é só esperar que a maré desça. T. A.
 
caderno de apostamentos de serôdio d'o.

almanaque de óbitos, i

aconteceu um dia, como sempre acontece. mas nada havia nas agendas que levasse a tal acontecimento estimar. assim foi, no entanto.
donato madeira, robusto rapaz, primogénito e sem irmãos, carpinteiro de ofício, faleceu. caiu-lhe uma mesa talhada em cerejeira sobre a cabeça, expondo cruamente a massa em que se arrumavam os seus poucos raciocínios. donato, vivo, já não era rapaz que tangesse a beleza, mas observá-lo naquele estado, cadáver, exposto na sua parcimoniosa intimidade, estimulava ainda mais os sentidos, suscitando algo entre a agonia e o nojo. os primeiros espectadores da sua miséria não conseguiram suster os vómitos. aliás, matéria não muito diferente da massa encefálica aleatoriamente saída da sua caixa craniana. registe-se ainda que donato madeira não deixou viúva ou prole. tudo o que era madeira morreu com ele. foi a enterrar no cemitério paroquial com as exéquias costumeiras para qualquer desgraçado de pouca ou nenhuma fortuna. nem o sino tocou e nem lápide ou elogio de malogrado mereceu. s. d'o.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xli, sobre o Abrupto e a companhia da noite

Julgava-me a única vítima de arrebate pelos processos corridos na abóbada da noite. Mas não sou. Há sempre mais alguém sob a metade nocturna da grã casa celeste. Mesmo aí, nunca estamos sós, nos gestos, nas propensões ou na vida. A lua testemunha-o. S. F.
julho 22, 2003
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xl, sobre a insuficiência irónica

Cheguei a esta estória por via do J do Cruzes Canhoto!. E o que mais inquieta nela, por anedótica que pareça, é que revela um lapso completo de trambelho e de capacidade de riso que chega a tanger o obsceno.
Um cartoon publicado na edição de domingo do jornal Los Angeles Times, parodiando uma célebre e premiada fotografia captada aquando da guerra do Vietname, mostra uma personagem, que representa a política, a apontar uma arma à cabeça de George W. Bush. Ora, sucede que um agente dos serviços secretos norte-americanos entendeu esse cartoon como uma possível ameaça. E, vai daí, tratou de abrir um inquérito para chegar à conclusão, certamente por via de um penoso exercício hermenêutico, de que o boneco pretendia apenas representar o assassinato político do presidente dos EUA. O próprio Los Angeles Times, na sua edição de ontem, reportou a caricata, senão paranóica, estória. É caso para rir. Coisa de que o diligente agente secreto é, concerteza, incapaz. S. F.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xxxix, sobre uma diferença chamada confiança


Há quem, com alguma exaltação ou inclinação populista, entenda que estes processos judiciais com maior eco mediático actualmente fazem parte de um processo de saneamento das elites, semelhante ao que sucedeu em Itália. Talvez assim não seja. Em Itália, o apelo ao juízes ocorreu em condições determinadas, entre as quais o relativamente elevado crédito de confiança concedido pelos italianos ao seu sistema judicial. Em Portugal as coisas não são equivalentes. O que diversas sondagens realizadas recentemente têm revelado é que os (baixos) índices de confiança no sistema judicial português não são muito diferentes dos (baixos) índices de confiança nos partidos políticos ou nos políticos nacionais. O que, convenhamos, não é indício nem augúrio que sossegue, no sentido em que os tribunais parecem não ser, na perspectiva e na expectativa dos portugueses, uma instância de apelo capaz de corresponder, isto é, capaz de garantir justiça. O que é um outro problema. Afinal, em quem e em que instituições é que se pode confiar? Quais são os esteios que escoram a legitimidade da ordem democrática portuguesa? S. F.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xxxviii, sobre o Estado e o estado da justiça portuguesa

A justiça judicial em Portugal é justiça? Ou é «justiça»? É que há uma diferença significativa entre uma e outra hipótese, a diferença que vai de o que é a justiça à ilusão do que é a justiça.

Numa ordem democrática, a justiça, enquanto resultado da acção do sistema judicial, é uma condição dessa própria ordem. A justiça, como produto judicial, para além de arbitrar conflitos, reserva vigilância ao património de direitos e de responsabilidades de cada sujeito ou organização, sustentando, assim, um conjunto de princípios fundamentais que blindam o estatuto de cada entidade pessoal ou colectiva. Sem um poder judicial eficaz e eficiente não é possível concretizar limites à acção das pessoas ou à intervenção das organizações, o que pode colocar em risco direitos, liberdades e garantias de cidadania.

Nos últimos dias parece verificar-se uma crescente inquietação, expressa no espaço público – de que o artigo de Vital Moreira, "O Estado-de-não-direito", hoje estampado no Público (n.º 4870, 22 de Julho de 2003, p. 5), é apenas mais um exemplo -, relativamente ao estado do sistema judicial português. Esse desassossego, no entanto, parece decorrer sobretudo do facto de algumas pessoas de maior reconhecimento público terem sido envolvidas recentemente em processos judiciais.

É certo que não há muito, houve uma indignação generalizada, talvez chauvinista, por o defensor brasileiro de Fátima Felgueiras ter acusado a justiça portuguesa, em termos de processo penal, de ser anacrónica e, portanto, ter ainda marcas do autoritarismo ultrapassado em Abril de 1974. Num tempo mais próximo, António Martinho, dirigente da Ordem dos Advogados, foi demitido por ter denunciado o carácter inquisitorial que caracteriza o processo penal português. Muitos arguidos constituídos terão já sentido tudo isso mesmo na própria pele. Mas, agora, o problema, pois é um problema, tocou figuras notáveis e, através da tenaz reacção das respectivas defesas, adquiriu uma visibilidade pública inédita.

De qualquer modo, não é por agora o referido problema afectar pessoas notáveis que as coisas devem ser modificadas. Pelo que consta, há muito que deveria existir uma sensibilidade generalizada para o problema, uma vez que os seus indícios, esses, estão já há algum tempo catalogados e com evidência de sobejo. Portanto, se há que introduzir alterações que ofereçam maiores ou melhores garantias aos arguidos, não é como privilégio oportuno e de circunstância para alguns, mas como ajustamento institucional, a valer para todos, sejam eles serralheiros mecânicos de segunda, caixas de hipermercado, apresentadores de programas televisivos ou deputados. Pois Portugal, que conste, ainda é um Estado. Resta saber se de direito. S. F.
 
caderno de apostamentos de serôdio d'o.

a mulher que sonhava em sonhar

tinha o raro hábito de fazer coisas e, nos seus esconços ofícios da paixão, costumava conseguir conciliar o corpo com a ficção, como se fosse senhora de muito encanto e de performance elegante. mas era gorda, corpo balofo, disforme, com tendência para ruborescer facilmente.
um dia, por vontade, acompanhou o eclipse da lua e, depois dessa experiência, ficou muito mais mulher, com corpo composto. a partir dessa data, todas as noites sonhava estar a sonhar. e essa era a sua única forma de sonhar. jamais conseguira sonhar directamente sobre qualquer coisa. os sonhos que sonhava eram sonhos diferidos, de segunda ordem, no sentido em que cada sonho se revelava apenas dentro de um sonho. por isso, ao acordar, dia após dia, enunciava um e único desejo, sonhar sem um sonho como franquia para o sonhado. foi seu desejo para todos os dias, mas nunca se concretizou.
um dia a mulher que sonhava em sonhar morreu. a vida não cabia mais dentro de si. crescera demasiado, insuflada pelo desejo nunca logrado. crescera tanto que o mundo passou a ser o seu pasto. e mundos já não havia que lhe aplacassem a fome. morreu, pois, assim, a mulher que sonhava em sonhar. s. d'o.
julho 21, 2003
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xxxviii, sobre a metáfora de quem não percebe puto de bilhar

Uma última embirração com o actual presidente do Instituto Nacional de Administração. Segundo ele, "na administração há a cultura perniciosa de os dirigentes se especializarem naquilo a que chamo o bilhar burocrático: conseguir atirar a bola, ou o problema, para outro lado. Eterniza-se o jogo das bolas e não se resolvem os problemas" (Luís Valadares Tavares cit. in Público, n.º 4869, 21 de Julho de 2003, p. 14). A metáfora é tão elucidativa e ilustradora que se percebe que o homem deve perceber é de snooker. Ou, então, de golf. Pois concerteza que condiz mais com a sua condição e atitude. É só meter a bola no buraco. E, como em qualquer outro mistério, o problema fica resolvido. É assim também no jogo de berlindes, pelo menos enquanto não chega nenhum abafador. T. A.
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xxxvii, sobre o que não vai mudar antes da revolução cutural

Ainda a entrevista ao actual presidente do Intituto Nacional de Administração. Perguntou o entrevistador: "Vale a pena formar altos quadros da administração se, de cada vez que muda o governo, mudam todos os altos funcionários?". Respondeu o entrevistado: "Isso coloca a questão muito interessante que é a da escolha dos dirigentes. E eu acredito que à medida que tivermo um stock de dirigentes na administração com formação e com experiência, com certeza [sic!] que esse manancial de recursos humanos vai ser utilizado por qualquer governo de boa fé. (...) Outra questão é saber se há ou não influências políticas nas escolhas, e nos cargos de confiança política é natural que haja. Mas essa é apenas uma das facetas, pois também devem ser pessoas com qualidade e habilitadas para a função. Quanto mais pessoas habilitadas houver, mais estranho será recorrer apenas a critérios políticos" (Luís Valadares Tavares cit. in Público, n.º 4869, 21 de Julho de 2003, p. 14). O homem leu Eça mas já o esqueceu, concerteza. Prova do esquecimento: fala em governos de boa fé, utiliza, embora numa retórica envergonhada, o conceito de «exército proletário de reserva» aplicado aos lumpen altos dirigentes da administração pública e até admite vir a ser considerado estranho que os critérios políticos - concerteza que quereria dizer partidários - prevaleçam no escrutínio daqueles que serão recrutados para constituir a elite administrativa. É ainda de admirar o fideísmo do homem que leu mas concerteza esqueceu Eça, pois neste caso não sugeriu a criação de instrumentos de vigilância e monitorização cuidadosa do fenómeno da sobreposição das afinidades pessoais e partidárias no momento do recrutamento dos maiorais da administração pública. T. A.
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xxxvi, sobre o mal nacional que até já a razão de Eça acusava

O meu conservadorismo não é de recém conversa, assim como não sou catecúmena devota das xaroposas lições sem albergue celeste do Prof. Doutor João Carlos Espada. Nem todo o espírito é santo. Sou imperfeita e isso é quanto basta para justificar a fé que reservo em relação a algumas coisas, entidades ou pessoas. E estranho determinadas respostas. Como, por exemplo, a do actual presidente do Instituto Nacional de Administração, à pergunta sobre se, por acabarem os concursos para a admissão à administração pública, não receava o clientelismo. Cito, "Com certeza [sic!]. Temos o país que temos e Eça de Queirós já tinha razão nas suas crónicas e textos. E não é só clientelismo político, é nepotismo. É gostarmos de ajudar o amigo, o familiar, o filho do primo, e muitos portugueses quando fazem isso, até se sentem bem: «Ah, ainda bem que consegui ajudar o Joãozinho, que não arranjava emprego, e assim sempre ficou tarefeiro na administração pública..» Faz-se por bondade, mas cria-se socialmente uma situação de maldade. Por recear isto mesmo, entendo que estes novos sistemas devem ser monitorizados cuidadosamente" (Luís Valadares Tavares cit. in Público, n.º 4869, 21 de Julho de 2003, p. 13). A inocência da resposta é tal que, concerteza, nem Eça diria melhor. Ó fé minha!..., qual é o teu paradeiro? T. A.
 
Sebenta de 3ás

Apontamento xxiii, sobre o significado de abrupto

Por curiosidade, Bierce também propõe uma entrada para abrupto no seu Devil's Dictionary. "ABRUPT, adj. Sudden, without ceremony, like the arrival of a cannon-shot and the departure of the soldier whose interests are most affected by it. Dr. Samuel Johnson beautifully said of another author's ideas that they were «concatenated without abruption»". Isto, pois, é que é ser Abrupto e não o que um qualquer danado diz. 3.
 
Sebenta de 3ás

Apontamento xxii, sobre o que querem ser nesta reserva

Ambrose Bierce propôs, em Devil's Dictionary, a seguinte entrada para cínico: "CYNIC, n. A blackguard whose faulty vision sees things as they are, not as they ought to be. Hence the custom among the Scythians of plucking out a cynic's eyes to improve his vision". Quase que se justifica dizer "é diabo!"... 3.
 
caderno de apostamentos de serôdio d'o.

a fome escrita nas mãos

o rapaz mostrou as mãos ao velho e o velho disse-lhe tens as mãos de um rapaz que quer fazer mundos, mas que não os fez ainda. tens a fome da vida escrita nas mãos. o rapaz afastou-se.
depois, deixou-se cair. enterrou as mãos. cresceu. e um dia chamaram-lhe deus. s. d'o.
julho 20, 2003
 
Sebenta de 3ás

Apontamento xxi, sobre a identidade contra a memória

Era uma mulher estranha, não por ser estranha, mas por ser mulher. Quem seria ela?, ela que levava duas crianças, uma ao colo, contra o peito, a outra pela mão. Era a Ana, a Ana Maria com quem, no liceu, quase todos os rapazes, uns discretos, outros confessos, sonharam paixão. Ela, porém, não quis nenhum, preferiu um estranho de Tomar, o que provocou uns quantos desvarios entre a rapaziada que ficou com o coração traído. Hoje, quinze anos depois, a Ana já é mãe. Mas a sua aura d'outrora, agora, é baça. A beleza fugiu-lhe. Por isso, dela, hoje, é preferível a memória. A rapariga bonita que não foi de nenhum deles. Voltou, mas já não é ela. 3.
 
Sebenta de 3ás

Apontamento xx, sobre a redenção

Passo pós passo, avenida além. O trânsito automóvel é raro. E a cidade, recolhida em si, oferece-se a quem, pelos traços que dividem a avenida, caminha. É uma sensação quase absoluta de comunhão com a noite e com o lugar. Apenas os soturnos agentes da PSP da patrulha nocturna não compreendem este exercício de redenção. Ele explica-lhes que o seu comportamento não é anormal, apenas pouco frequente. Mas os polícias acham estranho. Ninguém que eles conheçam tem o hábito de se redimir deste modo, caminhando pela avenida. Ele, depois, segue indiferente o seu caminho. Coisa que os polícias entendem ainda mais estranho. Perseguem-no com o olhar. Quando ele se afasta, "Quem é este gajo?" pergunta um agente ao outro. "Não sei, só sei que ele tem esta mania de andar assim pela avenida". 3.
julho 19, 2003
 
Sebenta de Teresa Alma

Almanaque da República, iii

Novas prosas que comovem e outras matérias de pátrio relevo, recentemente publicadas no Diário da República, o jornal de todos nós.

Resolução do Conselho de Ministros n.º 92/2003, de 12 de Julho. Desafecta do domínio público militar parte do prédio militar n.º 13/Coimbra, designado «Quartel da Graça ou da Sofia», no município de Coimbra.

Despacho Normativo n.º 29/2003, de 12 de Julho. Determina, ao abrigo do artigo 45.º do Regulamento (CE) n.º 2342/99, da Comissão, de 28 de Outubro, e do n.º 1 do n.º 8.º do Despacho Normativo n.º 2/2000, de 10 de Janeiro, que o lote correspondente a 20% dos direitos ao prémio por vaca em aleitamento existentes na reserva nacional serão atribuídos aos criadores de bovinos de raças autóctones.

Portaria n.º 559/2003, de 16 de Julho. Altera os quadros de pessoal do Centro Psiquiátrico de Recuperação de Arnes e do Hospital de São José.

Decreto Legislativo Regional n.º 16/2003/M, de 18 de Julho. Regula a actividade artesanal da obra de vimes na Região Autónoma da Madeira.

Acórdão n.º 306/2003 do Tribunal Constitucional. Pronuncia-se pela inconstitucionalidade e não se pronuncia pela inconstitucionalidade de várias normas do decreto da Assembleia da República n.º 51/IX, que aprova o Código do Trabalho.

Nada a acrescentar, por ora. T. A.

 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xxxv, por que hoje não é um sábado como os outros?, ii

Estava entretida nas minhas leituras matinais quando um amigo se aproximou da minha mesa. Indagou sobre se o cadáver ontem encontrado era, de facto, o de David Kelly. Percebi-o assanhado. Certamente que estaria já na disposição de me atormentar com a tese da conspiração sobre a qual, certamente também, terá ruminado toda a noite. Não lhe prestei muita atenção. Interessou-me mais saber que rapaziada do Feira Nova se foi abastecer ao Continente de Leiria das promoções de produtos que tinham cinquenta por cento de desconto (vide Público, n.º 4867, 19 de Julho de 2003, p. 22). É isto que me faz gostar do mercado livre. E embirrar com os açambarcadores que, vá lá saber-se porquê, demoram propositadamente a emissão de vendas a dinheiro aos seus clientes. T. A.
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xxxiv, por que hoje não é um sábado como os outros?, i

Hoje não é um daqueles sábados. Acordei sem angústias e, cedo ainda, fui aos jornais. E gostei do que li, o que me fez sentir que este sábado não ia ser um sábado daqueles...
Na capa do Expresso (n.º 1603, 19 de Julho de 2003) é noticiado que Filomena Pinto da Costa, revelada na passada semana ao mundo pelo próprio semanário, apresentou uma queixa na PSP acusando o seu marido de agressão. Na capa do Diário de Notícias (n.º 49.058, 19 de Julho de 2003), com desenvolvimento na página vinte e cinco, é noticiado que Jorge Nuno Pinto da Costa apresentou uma queixa por injúrias e ofensas corporais. Só o Público (n.º 4867, 19 de Julho de 2003, p. 27), autêntico desmancha prazeres, é que nos balança na dúvida. Segundo o que noticia as agressões terão sido mútuas e recíprocas, assim como as queixas apresentadas. Num pormenor, no entanto, todos os títulos acordam: o reencontro do casal aconteceu por o senhor ter ido a casa da senhora entregar um presente à filha de ambos que, anteontem, terá completado dezasseis verões. T. A.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xxxvii, sobre a lucidez

Foi agora. Passei pelo centro de idosos - o nome é pouco próprio, reconheço, mas por aqui é como o lugar é conhecido -, fronteiro à minha casa e uma imperceptível ladaínha tomou-me a atenção. Olhei. Um velhote urinava para um canteiro de flores e, pelo que percebi, orava pelo seu bem estar botânico. "... e que Deus vos proteja deste endiabrado sol que teima em secar-vos a raíz" foi o que consegui ouvir, enquanto ele se balançava, como se segurasse uma mangueira e estivesse a regar o jardim. E estava. S. F.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xxxvi, sobre Paris, Texas

Pode ser cisma minha, mas sobre o celulóide de Wim Wenders chamado Paris, Texas pouco há a dizer. A coisa é mais para ver. Ou para rever. Ponto final. S. F.
julho 18, 2003
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xxxiii, ainda sobre os acessos ao la lipset, in slide & mundos

Não é seguro, mas suspeito que o mui danado do Sérgio exultará por saber que O quarto do pulha colocou um postigo, à direita, que dá acesso ao la lipset, in slide & mundos. T. A.
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xxxii, sobre os acessos ao la lipset, in slide & mundos

Não sei quem é o João L. Nogueira, mas o rapaz do Socio[B]logue é atencioso e, suponho, simpático. Para além de alinhar o la lipset, in slide & mundos no campo que reservou aos colunistas, destacou o atelier variado do Sérgio na coluna dos blogues domésticos das ciências sociais. O Sérgio certamente que ao tomar conhecimento do facto se sentirá incomodado, mas provavelmente nada dirá sobre o assunto. Não conheço cínico com maior mania da reserva e do recato. Não lhe fica bem. Mas ele é mesmo assim. T. A.
 
caderno de apontamentos de serôdio d'o.

ser, nenhuma hipótese

és, enquanto retábulo de vida, agente. és, também enquanto retábulo de vida, paciente. és ninguém se conseguires ser ou se fugires para estar. depois, um dia morres para empregar a memória, mas não deixas de ser. passas apenas a foste e tornas-te impronunciável na primeira pessoa. s. d'o.
 
caderno de apontamentos de serôdio d'o.

ser, sétima hipótese

és, enquanto retábulo de vida, sujeito gregário em duas proporções. apenas por ti bastas-te. por todos os outros excedes-te. mas nunca és imenso ou suficiente apenas. s. d'o..
 
caderno de apontamentos de serôdio d'o.

ser, segunda hipótese

és, enquanto retábulo de vida, sujeito gregário em dois tempos. pela relação com os outros solidarizas-te com a solidão que te faz ser quem és. pela recolha a ti mesmo confessas-te com inveja de quem és, demasiada companhia para ti. s. d'o..
 
caderno de apontamentos de serôdio d'o.

ser, primeira hipótese

és, enquanto retábulo de vida, sujeito em dois tempos da música. pelo silêncio descobres-te. pela melodia inventas-te. s. d'o.
julho 17, 2003
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xxxv, sobre a blogosfera

Mas o que é que aconteceu ao Abrupto? Virou broadsheet ou quê? Será que esta versão estendida, tipo lençol, é para durar? Espero que não.
Entretanto, verifiquei também que a onda de indignação pela exposição do Fernando no último Herman-SIC já chegou ao Blogue dos Marretas. Tarde? S. F.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xxxiv, sobre os vigilantes distritais

Ainda antes de o diploma sobre as áreas metropolitanas e comunidades urbanas haver sido publicado no Diário da República, em Maio passado, a primeira vaga de intenções da generalidade dos presidentes de Câmara Municipal do distrito de Santarém sugeria a futura criação de duas comunidades urbanas, a do Médio Tejo, a Norte, e a da Lezíria do Tejo, a Sul. Mais recentemente, parece que com paternidade da federeção distrital do PS de Santarém, surgiu a ideia de, reunindo todos os municípios do distrito de Santarém, se criar a área metropolitana do Ribatejo (vide Público, n.º 4865, 17 de Julho de 2003, Suplemento Local – Lisboa, p. 52). Esta obsessão em reeditar a matriz distrital nas novas formas de associação municipal é recorrente, não é um exclusivo nem do distrito de Santarém, nem do PS. Mas é alimentada sobretudo pela lógica instalada nas estruturas partidárias, nomeadamente por essas federações de notáveis de campanário chamadas distritais. Por isso, que ninguém se supreenda com os mapas de áreas metropolitanas, comunidades urbanas ou comunidades inter-municipais que vierem a vingar. Parece que pouca ou nenhuma atenção tem sido prestada à interdependência sócio-territorial entre os vários municípios. É esta, pois, a chamada «regionalização a partir de baixo» tão propalada pelo actual Governo. Sem qualquer racionalidade que não seja a das redes e das afinidades, designadamente partidárias, entre os senhores presidentes de Câmara Municipal. O que não é, como nunca foi, critério de grande juízo ou razão. S. F.
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xxxi, sobre uma reforma que não parece

Confesso, ontem corri com alguma paciência a listagem, publicada no Público, (n.º 4864, 16 de Julho de 2004, pp. 3-8) de cursos oferecidos pelas instituições públicas de ensino superior. E o que vi corresponde pouco à retórica que foi oferecida pelo ministro da Ciência e do Ensino Superior. Bem sei que as estimativas, por efeito das tendências demográficas existentes, apontam para uma gradual diminuição, no futuro, dos candidatos a um curso do ensino superior. Mas não compreendo onde é que está a coerência das coisas com as palavras do ministro. A maioria dos cursos criados tem menos de trinta e cinco alunos, quando esta bitola, à cega e à bruta, foi indicada como limiar mínimo de sobrevivência para qualquer curso. Conversa de ministro, pois claro. Verifiquei também que as faculdades de Direito tanto da Universidade de Coimbra quanto da Universidade de Lisboa mantêm intocada a oferta de vagas... novecentas e dez! Verifiquei igualmente que um dos melhores cursos de sociologia do país, o do ISCTE, viu diminuído os seus numerus clausus em 10%, enquanto que outros, bem menos cotados e com uma procura inferior, mantiveram o número de vagas oferecidas. Poderia continuar, mas estes exemplos, para mim, são quanto basta. Para além disso, incomoda-me que existam ministros cara-de-pau com nome de felino que se suspeita já não existir na Malcata. Trocava um dos ditos bichos por este ministro. E, seguro, enganar-me-ia menos. T. A.
julho 16, 2003
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xxxiii, sobre José Manuel Fernandes, o director do Público

O editorial de José Manuel Fernandes estampado na edição de hoje do Público (n.º 4864, 16 de Julho de 2003, p. 11), "125 dias", é uma daquelas peças... estranhas. E é estranho sobretudo se se tiver em memória o eco do editorial que o mesmo José Manuel Fernandes escreveu para a edição da última sexta-feira. Segundo o que ele então escreveu, "um jornalista sabe ver quando uma informação, mesmo «objectiva», é parcial. Ou, para ser claro, sublinha uns aspectos e minimiza outros" (Fernandes, José Manuel, "Baixas de guerra", in Público, n.º 4859, 11 de Julho, p. 4). Ora, o que é que faz o director do Público hoje no seu editorial? Faz justamente isso. Pega na proposição da "previsão prudente", que estimava que a ofensiva da coligação anglo-americana no Iraque iria durar centro e vinte e cinco dias... e avança a partir desse pressusposto, sem o questionar. A «previsão prudente» revelou-se um autêntico fiasco, mas isso não pareceu incomodar José Manuel Fernandes. Tão pouco por um instante se interrogou sobre se a prudência da previsão era realista. E tão pouco se sobressalta sobre se tal prudência não foi inflacionada por informações prudentes que, pelo que se viu, terão sobrevalorizado um conjunto de parâmetros e perigos.
Não é estranha a posição de José Manuel Fernandes, pois ele anunciou-a, e bem!, antes da ofensiva sobre o território iraquiano ter começado. Não é estranha a sua aparente obsessão justificacinista, pois é sabida, e bem!, a sua posição. Mas é estranho que não saiba o que é isso de objectividade parcial, pois ele mesmo escreveu sobre isso e não há muito tempo. Por isso, é estranho, e não pouco, que não suspeite da "previsão prudente" e a assuma como um quase imperativo categórico. Pois, se assim não fizesse, talvez que algumas das "más notícias" inventariadas não lhe parecessem mais do que factos óbvios, embora o óbvio, claro está, não seja assim tão óbvio quanto isso. S. F.
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xxx, sobre coincidências infelizes

Vi nos escaparates, com chamada à primeira página do Diário Económico, que o Governo português quer a Galp no petróleo de São Tomé e Príncipe. Pouco depois, ouvi na TSF que, nesta madrugada, ocorreu um golpe de Estado em São Tomé e Príncipe e que vários destacados dirigentes foram feitos prisioneiros. Não é bom começar o dia com estas coincidências.
T. A.
 
Sebenta de 3ás

Apontamento xix, sobre quinta-feira

Loyko, quinta-feira, pela noite, em Águeda. Será que a capital me dispensa para o concerto dos ciganos russos? 3.
 
Sebenta de 3ás

Jantar inocente, com consideração sobre qualquer coisa chamada blog

Ele foi-se lá para os lados da baixa, à Calçada do Garcia, uma que arriba a encosta para o castelo e que conflui com o Largo de S. Domingos, a um restaurante nepalês, exíguo. À chegada, a ordem foi de espera. E ele, com os outros, esperou. Esperou na rua. E sentiu-se como alguém debruçado sobre a janela a investigar a fauna viandante que por ali, para cima e para baixo, circulava. Às tantas, um jovem, tamanho de pigmeu, com uma t-shirt preta, irrompeu irado do restaurante, clamando contra a atitude do companheiro que o seguia com ligeiro atraso. "Não gosto dessa sua subserviência subsariana!" foi esta a admoestação que ele conseguiu ouvir. Acontecimento que o levou a pensar para consigo: ora cá está um com espírito de quem tem um blog. Confessou este seu raciocínio aos outros e eles riram. Entretanto, não muito depois, foram chamados. Havia já lugar no restaurante. E seguiu-se o jantar. Ou, melhor, um jantar. 3.
julho 15, 2003
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xxxii, sobre o perfume dos pêssegos que me toca

O perfume dos pêssegos inebria-me. E revolve-me em dilemas. Sei que, se os comer, o seu perfume se dissipará. Que fazer?, repito a inquietude de Lenine antes da revolução. Por ora, basta-me o seu perfume. Consigo resistir ao apelo da sua polpa. É o seu perfume que me cativa. Só não sei até quando. S. F.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xxxi, sobre a ética e os touros

Alma amiga cedeu-me temporariamente o Boletim da Ordem dos Advogados n.º 27, acabadinho de lhe tocar as mãos, por conter um dossier sobre as questões éticas implicadas no espectáculo tauromático. Os textos que compõem esse dossier são quatro, mas interessa-me reportar aqui sobretudo um deles.
Joaquim Grave, nas suas "Reflexões éticas sobre a utilização do toiro bravo na lide", começa por afirmar que o touro tem duas vidas, uma «privada», que dura aproximadamente quatro anos - no campo -, e a outra «pública», que dura aproximadamente vinte minutos - na arena. Ora, por razões várias - inclusive éticas -, na sua primeira vida, até ser levado à lide na praça, o touro deve permanecer intocado e ser preservado no seu estado natural, bravo. Na prática, é daí que decorre a sua identidade. Como refere o autor, "o toiro de lide, o toiro bravo, não é nem uma coisa, nem uma pessoa, nem um animal doméstico, nem um animal selvagem, é um ser essencialmente bravo" (p. 61). Ora, em consequência, para que não restem dúvidas, "a ética tauromática é pois a seguinte: respeita-se a própria natureza do touro combatendo-o, pois é um animal de combate; e na maneira como se combate, respeitam-se igualmente as relações singulares de amigo/inimigo que o homem tem para com ele" (ibidem). Ou seja, rogo paciência para compreender esta "espécie de ética aristotélica", o princípio que está aqui subjacente é o seguinte: "para cada ser, o seu bem supremo não é (pode não ser) simplesmente um estado passivo (o prazer face à ausência de dor). O bem estar supremo pode residir numa actividade pela qual cada ser actualiza as suas potencialidades, pela qual realiza activamente a sua própria essência. É exactamente o que faz o toiro: sendo um ser por natureza bravo, ele realiza o seu grande bem lutando, ele realiza a sua natureza de lutador na luta, e ele realiza-se plenamente a ele próprio na corrida e pela corrida" (ibidem).
O tom do texto não é sempre assim tão surreal, mas são sobretudo os excertos aqui reportados que o calibram, pautam e sintetizam. Para além disso, o texto apresenta ainda como propriedade uma forma assertativa que incomoda qualquer cínico. E, sobretudo, esquece que toda a narrativa de fundamentação dessa tal espécie de ética é produzida por homens. Esquece que são os homens que definem a identidade do touro - pela relação que estabelecem com ele -, assim como esquece que são os homens, ou alguns, que estabelecem qual é o bem supremo do touro. Afinal, os touros não poderiam ser apenas apascentados e transportados para o matadouro como qualquer outro bovino? O bem supremo do touro bravo não pode ser semelhante ao de um boi charlês? Concerteza que não!, é a resposta encontrada no texto referido. Afinal, o touro é bravo. E, como é sobejamente sabido, o destino de qualquer bravo cumpre-se no instante em que ele se (a)bate. Parece que é o que diz a ética. Nem sempre o destino dos animais é não ser objecto de sofrimento. S. F.

Post-scriptum, inadvertidamente, antes foi omitido que o Joaquim Grave é médico veterinário. Concerteza que não de touros bravos. Os touros bravos, pela ética da coisa, não carecem de veterinário. A única espécie de seringa que conhecem é a farpa do ferro e na arena. Para o gáudio tão natural quão primário da afición. Olé!, gritam uns. Olarilolé!, exultam outros.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xxx, sobre as improváveis praias

A imaginação autárquica é prodigiosa. Lê-se num diário de referência que, no próximo Verão, Castanheira de Pêra vai ter uma grande piscina, com quase cem metros de diâmetro, com palmeiras, bungalows, seis veleiros ancorados, barcos a remos e ondas articificiais, que parecerá uma praia. Embora muitas obras em curso sejam comparticipadas em 75% por fundos comunitários e outras em 50% pelo Instituto Nacional da Água, o presidente da Câmara Municipal lá do sítio declarou que existe "falta de sensibilização do Governo para apoiar as zonas do interior mais carenciadas" (Pedro Barjona cit. in Diário de Notícias, n.º 49.054, 15 de Julho de 2003, p. 26). É um facto evidente. Governo após Governo, muitos dos lugares do mapa portugês mais afastados da orla atlântica sofrem um acentuado processo de erosão demográfica, processo que parece inexorável. Outro facto é que Castanheira de Pêra situa-se a aproximadamente cem quilómetros da praia mais próxima, talvez a praia do Osso da Baleia. Não há por lá é palmeiras ou veleiros ancorados. É verdade. S. F.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xxix, sobre a pessoa em ministro de Estado e da Defesa

É difícil poupar os encómios a Paulo Portas, designadamente à sua memória. Quem mais é que, para responder à matriarca da família Soares - "que querem fazer desaparecer", diz ela -, se recordaria da resposta que, há alguns anos atrás, Jaime Gama deu aquando da lançada suspeita de que Mário Soares teria beneficiado do tráfico de diamantes garimpados em Angola? Essa do fait-divers é mesmo de quem não esquece... o que de importante os outros disseram. Faculdade imprescindível a qualquer estadista de craveira. Não é? S. F.
 
Sebenta de Teresa Alma

État d'esprit, vi

Hoje, o swing amarga-me. Deus levou-nos Benny Carter. Sinto que quase morro também. Não morro para poder sofrer. Não consigo pronunciar I'm in the mood for swing. E as lágrimas traem-me, quase que me lavram a face. T. A.
 
Sebenta de 3ás

Apontamento xviii, sobre os círculos como obsessão

Depois de ler o ensaio de Emerson sobre os círculos fui tomado por uma curiosidade, talvez mórbida, que me impele a ler mais sobre a matéria. Estou agora na primeira paragem, em Les Métamorphoses du Cercle, de Georges Poulet. Interessa-me em particular perceber como é que uma metáfora geométrica, como o círculo, porque obriga a perspectivar por uma determinada forma, condiciona a arquitectura dos roteiros cognitivos que reportam dois fenómenos particulares: a identidade pessoal, por um lado, e o conserto político moderno, por outro lado. Por ora, no entanto, limito-me a citar Poulet a propósito da concepção de pessoa no romantismo. "Mirroir de la circonférence, le centre révèle à celle-ci sa perfection propre, de même que la circonférence, en reflétant le centre, renvoie à celui-ci une image de lui infiniment amplifiée. En se mirant dans le cercle, le centre découvre sa propre profondeur et, par conséquent, la possibilité de transformer celle-ci en étendue" (Poulet, Georges, Les Métamorphoses du Cercle, Paris, Flammarion, 1961/1979, p. 183). Há por aqui, pois, um enorme programa de investigação. Oxalá as diversas disponibilidades e o engenho me permitam avançar. 3.
julho 14, 2003
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xxix, sobre poesia em acto que pouco se vê

Creio que se chamava Sandra, ela. Era professora numa escola de um subúrbio da capital e recorria a estratégias pedagógicas pouco ortodoxas. Um dia, entrou na sala de aula, preparada para leccionar sobre os Lusíadas, e escreveu no quadro, já não de ardósia, “o adamastor é uma nêspera”. Os putos, curiosos, calaram-se e compuseram-se exemplarmente nos respectivos lugares. E nunca eles acompanharam uma exposição da professora de modo tão implicado. Nem se incomodaram por o adamastor, afinal, não ser uma nêspera, pois aprenderam o que era um monstrengo. Nêspera já eles sabiam, e muito bem, o que era. T. A.
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xxviii, a propósito da passagem de Lula pela Europa

Toda a caravana fandanga que andou estes dias atrás do Presidente da República do Brasil - com passagem, inclusive, pela LSE, para uma conferência -, fez-me recordar a extraordinária rapsódia folk de Mário de Andrade sobre o insigne brasileiro anónimo, mais retinto do que a noite negra, Macunaíma o herói sem nenhum caráter. Em particular esta passagem que reporto abaixo.
"Nisto Jiguê bateu na cabeça e exclamou:
- Achei!
Os manos levaram um susto. Então Jiguê lembrou que eles podiam ir na Europa também, atrás da muiraquitã. Dinheiro, inda sobravam quarenta contos do cacau vendido. Macunaíma aprovou logo porém Maanape que era feiticeiro imaginou, imaginou e concluiu:
- Tem coisa milhor.
- Pois então desembuche!
- Macunaíma finge de pianista, arranja uma pensão do Governo e vai sozinho.
- Mas pra que tanta complicação si a gente possui dinheiro à bessa e os manos podem me ajudar na Europa!
- Você tem cada uma que até parece duas! Poder a gente pode sim porém mano seguindo com arame do Governo não é milhor? É. Pois então!
Macunaíma estava refletindo e de repente bateu na testa:
- Achei!
Os manos levaram um susto.
- Que foi!
- Pois então finjo de pintor que é mais bonito!
Foi buscar a máquina óculos de tartaruga um gramofoninho meias de golfe luvas e ficou parecido com pintor" (Andrade, Mário de, Macunaíma o herói sem nenhum caráter, Belo Horizonte, Villa Rica, 1928/1992, p. 88). T. A.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xxviii, sobre a força que o ópio tem

Afeganistão. Em Janeiro de dois mil e dois, o Governo interino, liderado por Hamid Karzai, proibiu a cultura da papoila e a comercialização e o consumo de ópio. A vida, porém, não permite condescendências a tal ordem, de tal modo que, ao invés do pretendido, a sementeira e a cultura de papoila aumentou, assim como a produção de ópio. Um perito em geopolítica das drogas propõe uma explicação plausível para o fenómeno. Diz ele que "convém ter em conta que, no contexto actual de insegurança e de falta de meios disponibilizados para a reconstrução e o desenvolvimento do país, uma diminuição demasiado rápida da produção de ópio não é desejável para os agricultores afegãos envolvidos nesta actividade económica, da qual dependem largamente para sobreviver" (Pierre-Annoud Chouvy cit. in Público, n.º 4862, 14 de Julho de 2003, p. 22). O mundo é assim mesmo. E a real politik é para todos. Até para os agricultores afegãos. S. F.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xxvii, sobre o homem que sabe da poda

O ministro adjunto do primeiro-ministro disse, a propósito da solução que preconiza para a Casa do Douro, que "o comércio tem de ser deixado a quem o sabe fazer". (José Luís Arnaut cit. in Público, n.º 4862, 14 de Julho de 2003, p. 16). E, para ilustrar melhor a sua sentença, acrescentou: "a Casa do Douro só está vocacionada para fazer o cadastro, funcionar como associação de direito público de defesa dos vitivinicultores, com um papel representativo da produção" (idem, cit. in ibidem). Não se sabia o ministro adjunto do primeiro-ministro tão versado em tal matéria. E, por isso, ainda bem que a tentação não foi entregar a missão de procurar uma solução política para a Casa do Douro a quem o soubesse fazer. S. F.
 
Sebenta de Teresa Alma

État d'esprit, v

Voz amiga segredou-me "o Francisco Repilado morreu" e emprestou-me o ombro. Talvez tenha chorado. Ainda sábado, ao fim da tarde, princípio da noite, ele esteve comigo, acompanhando-me com aquela ausência inocente de que só ele e os seus amigos são capazes. Morreu. Tinha a bonita idade de noventa e cinco anos. E a maior parte das gentes conhecia-o como Compay Segundo. Pelo menos desde que Buena Vista Social Club o revelou ao mundo. Ainda choro. Talvez ainda vá chorar mais. Sinto-me viúva. Inconsolável. T. A.
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xxvii, ainda sobre o vil metal

Constantino Sakellarides reagiu ontem às publicadas suspeitas de autorização indevida de pagamentos a privados que recaem sobre um conjunto de antigos dirigentes da Saúde de Lisboa e Vale do Tejo ("Factos que ninguém quer investigar", in Diário de Notícias, n.º 49.052, 13 de Julho de 2003, p. 13), ele incluído, alertando para a dimensão política do embrulhado problema. É que, ao que consta, os responsáveis políticos foram liminarmente ilibados. Mas, como Sakellarides alerta, os governantes não deixaram de semear condições propícias para a bronca se dar. A começar, claro está, pelo desenho do contrato que foi assinado com a entidade que tem vindo a gerir o hospital Amadora-Sintra. Mais um indício, afinal, de que a responsabilidade política nunca foi propriedade muito cultivada ou disseminada por cá. Portugal. T. A.
julho 12, 2003
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xxvi, sobre a coerência estampada

O Expresso (n.º 1602, 12 de Julho de 2003) faz publicar na página vinte e oito do seu caderno principal o «código de conduta» que vincula os seus jornalistas e colaboradores - sejam lá eles quem forem, uns, os jornalistas, e outros, os colaboradores. A oportunidade não poderia ser a mais indicada... É que na exacta e mesma edição do referido semanário, na revista Única, é publicada uma entrevista a Filomena Pinto da Costa, senhora que não tem crédito público diferente do de ser ainda esposa do presidente do Futebol Clube do Porto. A entrevista é um exercício típico de destilagem de despeito, nada mais. E para além de deslocada num título como o Expresso - pois parece mais própria desse enorme rol de revistas de afectos e de vigilância das personalidades públicas ou de um qualquer tablóide -, o único interesse público da peça é dar a conhecer o verdadeiro Bobi, personagem muito parodiada nos episódios do Contra-Informação. Quanto ao resto, tem a utilidade de fornecer um exemplo de como pode ser violado o ponto III do referido código de conduta. O que, convenhamos, é jornalismo. E é humano, demasiado humano. Sábado após sábado. S. F.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xxv, sobre um sociólogo de outrora, não de agora

Foi publicada ontem no Público (n.º 4859, 11 de Julho de 2003, p. 19) uma pequena entrevista ao sobejamente reconhecido e afirmado ideólogo da third way, Anthony Giddens. Uma certa cortesia concede que se continue a chamar-lhe sociólogo. Todavia, convém notar, desde a segunda metade da década de oitenta, Anthony Giddens pouca ou nenhuma sociologia tem produzido. Aliás, desde então, o seu único rasgo de discenimento sociológico notado foi o reconhecimento de que se justificava conceder a Georg Simmel um outro estatuto no panteão da sociologia. De tal modo que, nessa oportunidade - isto é, duas décadas corridas sobre a edição original de Capitalism and Modern Social Theory -, o próprio Giddens confessou que Simmel devia ter sido considerado nessa obra com a mesma atenção e proporção com que foram considerados Marx, Durkheim e Weber. É pouco para continuar a ostentar o título de sociólogo. Mesmo que se seja Director da LSE, London School of Economics and Political Science e até já se exista em versão lego. S. F.

Post scriptum, desde que orientou a sua atenção para o fenómeno da modernidade, Giddens tem criado, mais do que ensaiado, um conjunto significativo do que ele chama novos conceitos. Raramente, porém, esses tais novos conceitos têm a consistência ou densidade teórica que os conceitos sociológicos devem ter. Esse então de «economia civil», equivalente a sociedade civil, mas na esfera económica... é paradigmático da vacuidade analítica. E por isso, claro está, desnecessário. «Mercado» serve perfeitamente.
 
Sebenta de Teresa Alma

Almanaque da República, ii

Novas prosas que comovem e outras matérias de pátrio relevo, recentemente publicadas no Diário da República, o jornal de todos nós.

Resolução do Conselho de Ministros n.º 88/2003, de 7 de Julho. Aprova o II Plano Nacional contra a Violência Doméstica.

Resolução do Conselho de Ministros n.º 90/2003, de 9 de Julho. Desclassifica da rede ferroviária nacional o ramal de Viseu, constituído pela ex-linha do Dão, quilómetros 31,000-48,885, e pela ex-linha do Vouga, quilómetros 126,810-140, 800.

Resolução do Conselho de Ministros n.º 91/2003, de 10 de Julho. Autoriza o comandante-geral da Guarda Nacional Republicana a adquirir bens e serviços necessários à constituição e manutenção da força da Guarda Nacional Republicana, por ajuste directo e com dispensa de contrato escrito, até ao montante de (euro) 5000000, no âmbito da missão de apoio às forças da coligação em manutenção da paz e ordem no Iraque.

Aviso n.º 178/2003, de 10 de Julho. Torna público ter, em 31 de Outubro de 2002, o Governo da Irlanda formulado uma reserva contra a inclusão de várias espécies no anexo III da Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies de Fauna e Flora Selvagem Ameaçadas de Extinção (CITES), concluída em Washington em 3 de Março de 1973.

Acórdão n.º 3/2003 do Supremo Tribunal de Justiça. Na vigência do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, com a redução original e a que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, não se verifica concurso real entre o crime de fraude fiscal, previsto e punido pelo artigo 23.º daquele Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, e os crimes de falsificação e de burla, previstos no Código Penal, sempre que estejam em causa apenas interesses fiscais do Estado, mas somente concurso aparente de normas, com prevalência das que prevêem o crime de natureza fiscal.

Resolução da Assembleia da República n.º 56/2003. Recomenda ao Governo a criação de uma comissão de classificação dos programas de televisão.

Resolução da Assembleia da República n.º 57/2003. Renovação do mandato da Comissão Eventual para a Reforma do Sistema Político.

Decreto-Lei n.º 151/2003, de 11 de Julho. Altera o Decreto-Lei n.º 100/2001, de 28 de Março, transpondo para a ordem jurídica nacional as Directivas n.os 2002/34/CE, da Comissão, de 15 de Abril, 2003/1/CE, da Comissão, de 6 de Janeiro, e 2003/16/CE, da Comissão, de 19 de Fevereiro, que adaptam ao progresso técnico os anexos II, III e VII da Directiva n.º 76/768/CEE, do Conselho, relativa à aproximação de legislações dos Estados membros respeitantes a produtos cosméticos.

Decreto-Lei n.º 152/2003, de 11 de Julho. Altera o Decreto-Lei n.º 93/2000, de 23 de Maio, que estabelece as condições a satisfazer para realizar no território nacional a interoperabilidade do sistema ferroviário transeuropeu de alta velocidade.

Portaria n.º 553/2003, de 11 de Julho. Revoga a Portaria n.º 142/2003, de 10 de Fevereiro, que estabelece as medidas fitossanitárias temporárias de emergência destinadas a impedir a introdução e a dispersão da bactéria de quarentena Clavibacter michiganensis (Smith) Davis et al. ssp. sepedonicus (Spieckermann et Kotthoff) Davis et al. no território nacional relativas a batata-semente originária da Dinamarca.

Portugal mudou. Por esta literatura, já não é o que era. T. A.
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xxvi, sobre o rapaz que mata touros se Deus quiser

Foi confirmada ontem pelo tribunal da Moita a multa de cem mil euros aplicada ao matador de touros, Pedrito de Portugal, por, em Setembro de 2001, haver estocado mortalmente um bovino bravo na praça local. À saída da audiência judicial, Pedrito de Portugal considerou ser demasiado elevado o valor devido pela morte do touro. A hipótese de desembolsar tamanha maquia custa-lhe, como é óbvio. Depois perguntaram-lhe se, hoje, também na Moita, tencionava repetir o feito. Primeiro escusou-se a responder. Mas, instado, lá soltou "seja o que Deus quiser". Ele é uma mera marioneta da vontade divina. Assim como o touro que enfrentará. Pelo que, no limite, hoje, na praça Daniel Nascimento, assistir-se-á a uma contenda entre bestas, naturezas, talhadas pelo engenho que só Deus tem. Quem seja o homem ou quem seja o touro é consequência da contingente, embora magnânima, vontade divina. T. A.
 
Sebenta de Teresa Alma

État d'esprit, iv

A indolência do fim de semana... Olho para os dias, para os domingos, as segundas, as terças, as quartas, as quintas, as sextas e não percebo o que distingue os sábados. Ao sábado falho. Ao sábado quase morro. Ao sábado a solidão é mais íntima. Ao sábado fujo ainda mais da personagem que sou. Ao sábado choro. Ao sábado engano-me. Ao sábado quero ser sempre tão outra. Ao sábado o amor evita-me. Ao sábado não entendo por que diferentes são os dias. Ao sábado o sangue amarga-me. Ao sábado sou incapaz de me vingar. Ao sábado esmoreço, uma depressão leve arrasta-me para o fundo, talvez fundo de mim. Ao sábado o evangelho serve-me nenhum consolo. Ao sábado não tolero o mundo como tolero nos outros dias. Ao sábado finjo-me menos. Ao sábado não sou capaz de desassossego, o desassossego é a minha identidade. Ao sábado sou capaz de matar. Ao sábado interrompo a sobriedade a que nos outros dias me vou obrigando. Ao sábado quero destruir-me. Ao sábado sei que nunca virei a ser mãe. Ao sábado sou só biologia, suspeito mesmo que Deus tenha alguma coisa a ver comigo. Ao sábado interrompo-me. Ao sábado pergunto-me se serei mesmo deste mundo, com a consciência alheia de que é por este mundo que sou e que o faço também. Ao sábado, quando sou, sou mais nostalgia do que projecto. Ao sábado incomodo-me menos com a dor. Ao sábado o mundo parece-me encerrado para as novidades. Ao sábado sinto que hei-de morrer todos os dias que me sobrarem. Ao sábado não acredito. Ao sábado não bebo Coca-Cola. Ao sábado quero ser uma mulher de Bukowski. Ao sábado é-me indiferente se me amas ou se te sou indiferente. Ao sábado não quero saber por que é que as coisas têm uma ordem que desprezo aos sábados. Ao sábado sufoco-me com a minha própria presença. Ao sábado não me intrigo. Ao sábado não pergunto por que tem o mundo tantos lugares e os oceanos entre eles. Ao sábado a loucura não me parece fulgor. Ao sábado resgato-me se a música vier em meu socorro. Hoje vou experimentar a banda sonora do O Brother, Where Art Thou?. Ao sábado é sempre assim. Mesmo quando assim não é. É um ciclo que me vence e vinga, como se regulado por um cronómetro fisiológico. Ao sábado os dias não deviam ser diferentes do que são. Mas ao sábado o sábado acontece sempre. E acontece como qualquer sábado. T. A.
julho 11, 2003
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xxiv, sobre os prémios não fungíveis

Provavelmente inspirados nas variações de Fukuyama sobre o thymos, os responsáveis governamentais pelo pelouro da adminstração pública pretendem que os estímulos à produtividade aí sejam não recompensas materiais, traduzidas em pecúnia, mas prémios de reconhecimento público, traduzidos provavelmente na atribuição de medalhas, na exposição de placas do tipo «funcionário do mês», na inscrição de nomes dos destacados em quadros de honra ou na realização de cerimónias quase de entronização, com muitos acepipes para a ocasião e, claro, com protocolo e adequado dress code, tailleur sóbrio para elas, fraque para eles.
Claro está que esta questão suscita celeuma. Têm razão os possidónios sindicalistas quando acusam o Governo de incoerência. Se, como foi anunciado, os governantes querem que a administração pública passe a ser gerida segundo o modelo empresarial - vá lá saber-se o que é isso... -, abrindo hipótese a diferenciações várias em função da produtividade individual, é conveniente ter presente que essas diferenciações quase sempre têm expressão em dinheiro, não em títulos honorários que o tempo dilui e posterga para a vaga memória. Mas, nisto, tem razão também o avarento Governo. Se os sindicatos invocam tantas vezes, como justificação de um conjunto de seguranças e benefícios de que usufruem os empregados do Estado e afins, o sentido particular do funcionário público, a sua abnegação e entrega à causa e à participação na condução da causa comum, então também não devem, agora, vir reclamar proveitos que se reflictam nas respectivas folhas de pagamento. Pois, se assim é, o reconhecimento por parte tanto dos superiores quanto dos utentes dos serviços deve ser matéria suficiente para lhes afagar o ego de funcionário público. Pelo que a melhor solução política para este impasse é, como em tantos outros casos, o lançamento de uma moeda ao ar. Caras isto, coroa aquilo. S. F.
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xxiii, será o rabo de fora?

No início do corrente ano, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa anunciou uma produtividade extraordinária em termos de despacho de processos e licenciamentos de obras. Sucede, porém, que, agora, segundo apurado pelo Público (n.º 4858, 10 de Julho de 2003, Suplemento Local - Lisboa, p. 50), os números divulgados nos boletins municipais não coincidem com aqueles que foram anunciados antes pelo edil em conferência de imprensa, ficando aquém, muito aquém, mesmo, deles. Curioso ainda é que, segundo o mesmo jornal, há duas semanas que os serviços camarários não conseguem apresentar uma explicação para a discrepância detectada, embora em Janeiro, ao que parece, o inventário dos despachos do presidente da Câmara Municipal merecesse publicidade e propaganda. Há aqui gato, concerteza. Ou escondido ou nas contas. S. F.
julho 10, 2003
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xxv, sobre o alcoviteiro universal

O dinheiro, sempre o dinheiro... Parece que o Ministério Público vai interpor uma acção com vista a conseguir ressarcimentos por pagamentos indevidos, avalizados por antigos responsáveis da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, à sociedade gestora do hospital Amadora-Sintra. A coisa roça quase os quatro vintes milhões de euros (vide Público, n.º 4858, 10 de Julho de 2003, pp. 2-4). Ainda relativamente a dinheiros, fica-se na expectativa sobre o que sucederá aos administradores e gestores públicos que, segundo uma auditoria do Tribunal de Contas, arrecadaram remunerações acima do limiar estabelecido e tolerado por lei (vide ibidem, p. 20). A questão, para além de moral, parece ser também jurídica. Ou será judicial? T. A.
 
Sebenta de Teresa Alma

État d'esprit, iii

O dia não foi fácil, estou extenuada. Pego no Público, viro-o, olho-lhe para as costas, à procura da tira de Bill Watterson. É fácil de encontrar. Aí, o Calvin pergunta "Papá, qual é a origem do vento?". O pai responde "São os espirros das árvores". O Calvin, intrigado, reage "A sério??". E o pai, pedagogo, explica "Não, mas a verdade é mais complicada". O Calvin sai para a rua, acompanhado pelo seu leal parceiro Hobbes, e, caminhando contra o vento, desabafa "As árvores estão a espirrar imenso hoje".
Esta tira fez-me recordar os meus sobrinhos, sobretudo as duas mais novas. Embora por vezes ainda as olhe como gente em miniatura, há muito que me vou surpreendendo com elas. Gosto em particular que, quando confrontadas com alguma coisa ou questão mais complicada, perguntem aos adultos que os interpelam "em que é que isso é diferente de uma pedra ou de um cão?". Porque isso vinca a sua atitude cínica e iconoclasta. E porque obriga os seus interlocutores à simplicidade. É estranho o modo como, hoje, as gurias crescem e aprendem a ser pouco inocentes. T. A.
 
Sebenta de 3ás

Apontamento xvii, aindo sobre Emerson

Vale a pena reportar o início do ensaio first series de Emerson sobre os círculos. "The eye is the first circle; the horizon which it forms is the second; and throughout nature this primary figure is repeated without end. It is the highest emblem in the cipher of the world".
Mas vale a pena também, ou mais ainda, reportar o último parágrafo desse mesmo ensaio. "The one thing which we seek with insatiable desire is to forget ourselves, to be surprised out of our propriety, to lose our sempiternal memory, and to do something without knowing how or why; in short, to draw a new circle. Nothing great was ever achieved without enthusiasm. The way of life is wonderful: it is by abandonment. The great moments of history are the facilities of performance through the strength of ideas, as the works of genius and religion. «A man», said Oliver Cromwell, «never rises so high as when he knows not whither he is going». Dreams and drunkenness, the use of opium and alcohol are the semblance and counterfeit of this oracular genius, and hence their dangerous attraction for men. For the like reason, they ask the aid of wild passions, as in gaming and war, to ape in some manner these flames and generosities of the heart".
Os círculos fazem-nos, a cada um de nós, um mundo dentro do mundo, um mundo que compreende o mundo que o compreende. Por isso, quando nos evadimos de nós, é a nós mesmos que nos encontramos. E descobrimos. Na companhia da solidão. 3.
julho 09, 2003
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xxii, sobre o Cavalieri não solitário

O triste incidente provocado por Berlusconi no Parlamento Europeu foi reeditado, embora noutro local e com outros protagonistas. Desta vez foi o secretário de Estado do Turismo italiano, Stefano Stefani, que, num artigo publicado no jornal la Padania, teceu considerações insultuosas para os turistas alemães que visitam a Itália. O que revela uma propensão enorme dos governantes italianos para o dislate e para a ofensa.
É verdade que Pacheco Pereira, através do testemunho que prestou no Abrupto, ajudou a perceber o episódio acontecido em Strasbourg. Quanto às considerações suplementares que ofereceu ficou a sensação de haver nelas complacência excessiva. É que, convenhamos, o desconchavo de Berlusconi relativamente a Martin Schulz e aos demais eurodeputados - convém não esquecer que Berlusconi os apodou de turisti della democrazia - não foi um acontecimento de circunstância que uma abordagem fenomenológica, por si, consiga esclarecer de todo. O problema reside, de facto, muito mais fundo. É um problema de orientação e de prática política, nem sequer é um problema de estilo ou de inveja relativamente a quem tem muito dinheiro. Pode bem Berlusconi ser um homem com riqueza, de pavio curto e até reagir de modo destemperado e sem sentido de Estado. Mas, isso, é apenas a superfície dramática e anedótica da questão. A essência do problema está nos fundamentos, alguns deles dissimulados numa retórica cautelosa para liberal ver, que sustentam a Coalizione della Casa delle Libertà, que reúne, para além de Berlusconi (e da Forza Italia), Gianfranco Fini (e a Alleanza Nazionale) e Umberto Bossi (e a Lega Nord). Aliás, a referida coligação parece um albergue de tendências diversas que confluem num mínimo comum que pouco ou nada tem de liberal. E é justamente esse encontro meramente táctico, muito menos do que programático, que, por exemplo, concede espaço à vertigem securitária que se vive actualmente em Itália e à escalada retórica, já sem pejo, contra os adversários políticos. Vistos, claro está, como diabólicos inimigos. Na prática, a cultura expressa nos comportamentos dos actuais governantes italianos é uma cultura de intolerância, de soberba e de arrogância. Escorada sobre a pretensão de que a maioria eleitoral conquistada antes opera como uma absolvição judicial e como um amparo legítimo da impunidade. O que está longe, muito longe, do que se entende por cultura democrática.
Para além disto, convém não esquecer que em tempos nada remotos uma estranha mancomunação de interesses dentro da União Europeia colocou a Áustria sob suspeita e em quarentena política por causa de Jörg Haider do FPÖ. Agora, sem sequer inquietude notada, aceita-se que Silvio Berlusconi, que domesticamente anda de braço dado tanto com Fini quanto com Bossi, seja a figura que toma em mãos a presidência rotativa da União Europeia. Evidentemente que existe uma dimensão institucional que dá cobertura à situação. Todavia, para além dessa dimensão, a legitimidade decorre igualmente da verificação de um conjunto de procedimentos e de processos. Dos quais a xenofobia, o chauvinismo, a impunidade e o insulto estão obviamente excluídos. Ou deviam estar. S. F.
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xxiv, sobre a União Europeia

A União Europeia é simultaneamente uma aventura e um horizonte. É uma aventura no sentido em que, tendo uma dimensão de ensaio, assenta sobre um princípio de incerteza. Ou seja, a União Europeia é uma experiência cujo espaço de resultados é incerto. E é um horizonte no sentido em que, por ora, parece ser um limite inexorável, relativamente ao qual não se vislumbra alternativa ou hipótese de retorno. Por isso, toda a informação sobre o processo de construção da União Europeia não é demais. Razão suficiente para saudar o artigo que o representante do Governo português na Convenção Europeia fez publicar hoje num diário nacional de referência (Lopes, Hernâni, "A Convenção Europeia: um primeiro balanço", in Público, n.º 4857, 9 de Julho de 2003, p. 8). Talvez, assim, tenhamos uma consciência mais circunstanciado do que está a ser programado. E de como está a ser programado. T. A.
 
Sebenta de Teresa Alma

Apontamento xxiii, sobre caramba, a última instância do discernimento

Não sou adepta do Presidente da República, menos ainda do modo como ele tem exercido os seus mandatos. Parece-me demasiado cauteloso e inerte quando devia actuar ou intervir, assim como me parece excessivamente sensível e melindrado quando destapam algum acto seu do passado. Há, no entanto, uma matéria em que me parece que Jorge Sampaio tem mantido uma posição coerente ao longo do tempo: a criação de novos municípios.
É insofismável que o processo legislativo relativo à alteração do regime jurídico que regula a criação de municípios foi um processo atabalhoado e opaco. Parece ter avançado mais a chuto e a golpe de pé do que, como se presume que devia ser, por deliberação conscenciosa e reflectida. O texto que foi votado na passada semana foi apenas a terceira versão que a proposta de alteração conheceu no intervalo de aproximadamente um mês. E, pior, a solução derradeiramente sufragada e que vingou é tão ampla que parece servir a vontade de qualquer freguês que deseje um município.
O que resta?, então. Resta a hipótese do Presidente da República exercer o seu direito de veto e, por aí, não promulgar o diploma que lhe deve ter sido remetido para efeito por estes dias. Aliás, ninguém deveria ficar espantado pelo facto. Há muito que é conhecida a doutrina e os alertas do Presidente da República sobre esta matéria. Por isso, perante tão flagrante desfalque de discernimento e de orientação por parte dos deputados da coligação da maioria parlamentar, oxalá o Presidente da República tenha coragem para pôr cobro a tamanho despautério. O país agradece. Mesmo que as gentes de Canas de Senhorim e de Fátima venham, para a rua, carpir mágoas. E apodar o Presidente da República disto e daquilo. T. A.
 
Sebenta de 3ás

Apontamento xvi, sobre Emerson

Talvez seja estranho, bizarro, mesmo, mas vou investir na leitura de um ensaio first series de Ralph Waldo Emerson sobre os círculos. O que será que irei por lá encontrar? Transcendentalismos? Ou geometrias? 3.
 
Sebenta de 3ás

Apontamento xv, sobre o cem como efeméride

Compete-me a mim dar conta não do feito, mas do facto: o reservado blog la lipset, in slide & mundos foi espreitado em mais de cem oportunidades. 3.
julho 08, 2003
 
Atelier para variações, por Sérgio Faria

Nota xxi, sobre a vontade de ser empresário como veneno

Pedro Feist, vereador da Câmara Municipal de Lisboa, anda às bolandas com uns jovens do PP – creio que não há jovens do CDS –, por causa da anunciada liquidação de uma empresa municipal, onde os rapazes teriam a sua sinecura. Desabafou assim o vereador: “Quando quis ensinar estes jovens o que é ser autarca, eles respondem com traição. Isto aborrece-me sobremaneira pela injustiça, até porque sabiam desde o início que a empresa ia ser extinta. Mas, ao mesmo tempo, já recebi da oposição manifestações de solidariedade” (Pedro Feist cit. in Diário de Notícias, n.º 49.047, 8 de Julho de 2003, p. 25). Não é bonito, isso da traição. Mas, compreenda-se, provavelmente os rapazes, fiéis ao seu ideário, queriam ser empresários, não ser autarcas. E foi pela empresa, estritamente ou sobretudo pela empresa, que se bateram. O facto de a empresa ser pública é um mero pormenor. Empresa é empresa. Assim como administrador é administrador. S. F.

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